"São 11 meses sem ela. Onze meses que não consigo cozinhar, pois cozinhava pra ela com todo amor e, na noite de 14 de março, quando eu ainda preparava o jantar recebi a notícia que ela não iria chegar. São 11 meses em que, nos três primeiros deles, os calmantes não me deixaram ver passar. A culpa por estar viva me fez parar de comer ou fazer qualquer coisa que desse prazer, foram 11 quilos perdidos em apenas um mês. São meses em que dedico a minha vida exigindo justiça para Anderson e Marielle, minha esposa.

Nesses meses recebi solidariedade, amor, afeto, reconheci velhos amig@s, alguns que nem eram amig@s, mas demonstraram todo seu potencial de amor por ela e por mim para garantir a continuidade da minha vida sem ela, quando eu não tinha mais nenhuma vontade de seguir. Conheci pessoas que me fizeram perceber que a luta não era só minha e que eu, por mais sozinha que possa me sentir, não caminho só. A palavra “semente”, tão usada nesses meses, passou a fazer sentido. Não existem outras Marielles, pois ninguém pode ser substituído. Existem milhares de pessoas pelo mundo que se indignaram frente à barbárie da noite do 14 de março e seguem comigo ressignificando essa tragédia para que nenhuma outra família sinta dor semelhante à minha, para que ninguém sinta a dor diária que sinto ao acordar sem ela.

Hoje, gostaria de pedir licença e dizer o que são esses meses pra mim. Muitas pessoas me veem em viagens, mesas expositivas, debates, entrevistas e acham que está superado. Me veem sorrindo e logo dizem “que bom você estar sorrindo”, e ainda tento compreender essa frase que me causa tanta angústia. Amigas, amigos e família se adaptaram a uma rotina diária de estar presentes e, ao mesmo tempo, respeitar o espaço de quando simplesmente não quero levantar da cama. Usar as redes sociais para postar lembranças nossas como uma das tentativas de manter nossas memórias e de dizer ao mundo que “sim, minha família existe e foi constituída com muito amor”. Idas semanais ao cemitério onde está toda a matéria que me interessava nesse mundo. Ter me mudado de estado para conseguir retomar aos poucos, mesmo que minimamente, uma rotina. Ser acusada de tantas coisas ruins e levianas quando, ao invés disso, poderia haver união para ressgnificar tudo isso e construir algo lindo, por ela, por nós. Lidar diariamente com fake news, que não só ferem a memória dela, mas dilaceram o coração de quem a ama.

Não é fácil. Expor a dor constante é difícil. Não há remédio, terapia, abraços, olhares que supram a ausência. O autocuidado que tanto exercia, hoje é mais uma autossabotagem que realizo para não encarar a realidade da falta. Pois, tudo mudou. Mudou sem me avisarem, eu simplesmente segui para não desistir de estar presente e porque a minha fé não me permite fazer de outra forma. Mesmo que, por muitas vezes, é o que eu gostaria. Quando me dizem “você é muito forte”, “você me inspira”, “de onde tira tanta força?”, “como você está hoje”, são frases que não consigo decifrar. Mas me inspiram e ajudam a seguir.

Muitas viúvas me mandaram mensagens de solidariedade e dizendo que a dor nunca vai passar, mas eu vou aprender a conviver com ela. Fará parte do dia a dia. Um dia a dia que ainda não chegou. Me causa arrepios viver como uma mulher de apenas 33 anos, pensar quão egoísta sou por tentar ser feliz novamente. Marielle e eu tínhamos problemas como qualquer casal. Nossa relação era de verdade. Tão verdadeira que foram anos sofrendo por lesbofobias até que, finalmente, estivéssemos residindo na mesma casa e vivendo de forma plena nossa família, nosso amor.

Se hoje compartilho esses sentimentos com vocês é para lembrar que estamos há 11 meses sem respostas da maior dor da minha vida que é dividida em vários corações, sem hierarquizar quem sofre mais, embora estar no local que ocupo hoje – na luta por Justiça – de certa forma seja uma privação do luto. A gente continuará seguindo, pois nos tiraram tanto que não podemos permitir que eles continuem celebrando com nossas perdas.

Mês que vem completará um ano da execução da Marielle e do Anderson e faço um pedido: ocupem todas as ruas, rompam o silêncio, dêem as mãos e vamos estar juntas exigindo justiça. Nenhum passo atrás será dado. Por Ela, por nós!"

 

Fonte: https://www.revistaforum.com.br/onze-meses-que-a-tiraram-de-nos/