Em novembro de 1994, Isaiah Berlin escreveu um discurso otimista em relação ao que esperava do século XXI. Acreditava ele que a realidade dos fatos descortinados por si só afastaria o flerte das pessoas com as ideias que sustentaram tiranias no século XX, como o comunismo e o nazismo. 

O otimismo de Berlin foi demasiado. Todavia, nada disso compromete a força de seu pensamento na luta contra qualquer tipo de regime ditatorial, totalitário, que voltasse suas garras contra seu próprio povo, enxergando como inimigo toda e qualquer voz discordante.

Berlin atacou o nazismo, o fascismo e o comunismo. Tornou-se uma referência na História das ideias políticas. 

Algumas de suas obras – como  A Força das Ideias – julgo importantíssimas. Conheci Isaiah Berlin por meio de um livro que meu pai tinha: Pensadores Russos. Depois fui atrás do restante, como Ideias Políticas na Era Romântica. 

Todavia, meu ponto aqui é o discurso escrito em 1994 e publicado no Brasil pela Editora Ayné. O livro é barato. Comprei a minha edição por R$ 19. Indico aos amigos que adquiram. Vale muito a pena por dois motivos: 1) quem ainda não tem contato com Berlin vai ali perceber um resumo de suas reflexões nas obras maiores e 2) quem já conhece vai se deparar com um texto emocionante em defesa da liberdade, mas sem cair no jargão de usar o vocábulo sem compreender essencialmente o que ele quer dizer. 

É que Berlin – dentro do discurso – reflete sobre o que seria a liberdade e quais limites precisam existir. 

Isaiah Berlin fez críticas à direita e a à esquerda. Compreendia que nenhuma ideologia poderia ser vista como solucionadora de todos os problemas diante da complexidade humana. Em essência, um ponto em comum com muitos pensadores conservadores como Michael Oakeshott, que assume até uma postura anti-ideológica ao criticar o racionalismo político e a fé política. 

Neste discurso de Berlin (repito: no final do século XX) há muito o que pensar. Afinal, a mensagem de Berlin chegou a nós que estamos no novo século, mas infelizmente sem as previsões feitas pelo pensador. 

Destaca Berlin: 

“Os homens vêm destruindo uns aos outros através de milênios, mas os feitos de Átila, o Huno, Genghis Khan, Napoleão (este, que nos apresentou ao extermínio em massa nos tempos de guerra) ou até mesmo o massacre armênio murcham em insignificância diante da Revolução Russa e suas ramificações: a opressão, a tortura, assassinatos que podem ser lançados na conta de Lênin, Stalin, Mao, Pol Pot e a sistemática falsificação de informação que impedia que todas essas atrocidades se tornassem de conhecimento público – isso sim foi sem paralelo na História”. 

Uma das razões pelas quais é importante conhecer tais ideias e consequências em detalhes é o fato inegável de que ainda há flertes com essas ideologias por aí, em muitos partidos políticos, seja pelos métodos de alcance ao poder, como pela manobra de narrativas para produzir assassinatos de reputações enquanto esses “assassinos” pousam de arautos da moralidade e da ética, como o PT fez antes de chegar ao poder, ao carregar a bandeira de “diferente”, “mais ético que todos” etc. Isso encantou muita gente e dialogou com um público que ia para além da ideologia que norteava o partido. 

Sem contar o quanto tais ideias motivam as ações do Foro de São Paulo, por exemplo. Isto mostra que eles sempre se reorganizam. 

Não raro se escutava – como ainda se escuta – que “essa coisa de esquerda radical não existe mais”; o “mundo mudou” e por aí vai. Só que ali estavam presentes os métodos oriundos das ideologias seculares, muitos deles revisionados e dentro de novas estratégias, como percebemos ao estudar Antonio Gramsci. Mas não é só um partido político. Isto se espalha em suas correias de transmissão por toda uma intelectualidade orgânica que prepara o terreno para a revolução vindoura. 

Berlin coloca que os regimes tirânicos sem precedentes do século XX – nazismo e comunismo – “não foram (…) causados pelos sentimentos negativos mais mundanos dos seres humanos descritos por Spinoza, quais sejam: medo, cobiça, ódio tribal, inveja, amor pelo poder; apesar de obviamente cada um deles ter contribuído a sua maneira. Na verdade, foram consequência de ideias, ou melhor, de uma ideia em particular. É de certa forma paradoxal que Karl Marx, que sempre menosprezou a importância das ideias em comparação com as sempre indiferentes forças econômicas e sociais da história, tenha, por meio de seus escritos, transformado o século XX de forma tão maciça, tanto na direção que ele almejava, quanto, por reação, em seu contrário”. 

O autor ainda lembra da consequência dessa visão racional extremada na busca pelo novo mundo e pelo novo homem: “Há homens que matam e ferem com uma consciência assaz tranquila sob a blindagem de palavras e escritos daqueles que possuem a fé inabalável de que a perfeição pode ser alcançada”. 

O próprio Berlin exemplifica em seu discurso de forma um tanto quanto irônica:

“Se você estiver convencido de que existe uma solução para todos os problemas humanos e de que alguém possui uma visão de uma sociedade que pode se concretizar apenas seguindo certos passos por vez, você e seus seguidores necessariamente garantirão que nada no caminho atrapalhe o trajeto em direção ao suposto paraíso na terra. Obviamente, só os estúpidos ou os de má-fé se colocariam contra tal empreitada, e as palavras de persuasão lhes seriam oferecidas. Caso esses alienados não fossem tocados pela “verdade”, leis sob medida seriam criadas para cerceá-los; caso o império das leis se demonstrasse abstrato em demasia, a força da violência viria em seu respaldo; em última instância, lançar-se-ia mão do terror e da carnificina. Lênin passou a acreditar nisso depois de ler O Capital e pregava assiduamente que uma sociedade mais justa, pacífica, feliz, livre e virtuosa poderia ser erigida graças as suas instruções, de forma que os fins justificam tudo e qualquer meio que precisasse ser usado”. 

Conheçam, meus caros, a obra de Isaiah Berlin. Percebam o quanto ele, assim como Richard Overy, Robert Service e outros, possuem a falar ao nosso tempo em que os flertes com as ideias perigosas se fazem presente, constantes. Além disso, estas são mutáveis depois das consequências trágicas para parecerem mais palatáveis. Todavia, como mostra Berlin, muitas das liberdades é perdida aos poucos. E aí, quando menos se percebe, estamos pela última fatia do que nos é tão caro. 

Nesta obra que aqui cito, vocês ainda se depararão com outro artigo do autor: A Procura do Ideal. Também se trata de uma preciosidade para os nossos dias. 

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