Carregada de polêmicas, a questão da pichação é tema de diversos debates sociais. Além de configurar um crime ambiental, a prática costuma ser vista como um mero ato de vandalismo por uma grande parcela da população.

No dia 22 de abril deste ano, um jovem de 23 anos foi preso após ser acusado de pichar um órgão público. O caso aconteceu no município de Delmiro Gouveia, região Agreste do estado de Alagoas.

O alvo do pichador, identificado como Antoniel Pereira dos Santos, foi a Academia da Saúde, localizada na Avenida Linduarte Batista Vilar do Bairro Eldorado.

 

Pichação realizada na Academia de Saúde

 

De acordo com o advogado criminal Juliano Alencar, a prática de pichar é considerada um crime pelo artigo 65 da Lei dos Crimes Ambientais, número 9.605/98.

“A lei estabelece uma punição que pode ir de três meses até um ano de prisão para o indivíduo que pichar o Patrimônio Público, além do pagamento de multa. Porém, de maneira geral é muito difícil encontrar o pichador, já que a prática geralmente é efetuada no período noturno” explicou.

No Brasil, existe uma distinção entre a pichação e o grafite, e apenas a primeira forma de manifestação é considerada um crime. De maneira simplória, a diferença básica entre as duas esferas de arte urbana é a entonação política e estética. O picho subentende o uso de grafia enquanto o grafite de cores e formas.

Sobre este ponto, Alencar ressaltou que em termos de lei não é fácil distinguir um do outro. “Se tem uma obra taxada como grafite em um órgão público também é considerado um crime. Nesse caso, não houveram palavras. E confesso que, por vezes, é difícil até para nós distinguir um caso do outro. De modo raso, nos atentamos para as formas, cores e palavras escritas. Geralmente o picho é uma frase. Mas um desenho ou uma frase colocada sob um patrimônio que não é seu é um crime para a lei” explicou.

Para a pichadora Lizz, como prefere ser identificada, a distinção imposta pela legislação brasileira é apenas uma forma de inibir o direito à liberdade de expressão.

“Eu reconheço que é um assunto delicado, mas acho a lei injusta. Acredito que as pessoas tenham a liberdade de se expressar, seja da maneira que for, desde que não agrida ninguém. Nossas vozes, principalmente as da periferia, são obrigadas a se calar o tempo todo, e o picho é uma das poucas maneiras que encontramos para tê-la de volta. Acho que criminalizar o picho é calar essas vozes” afirmou.

Lizz picha desde os 17 anos de idade, e segundo ela a prática começou pela vontade de levar mensagens positivas e de conscientização para a vida das pessoas.

“Fui impulsionada pela intenção de levar mensagens para a vida e o cotidiano das pessoas, mensagens positivas e de conscientização. Acredito que essas frases possam mudar o dia de alguém de alguma forma, além de tocar e conscientizar politicamente. Quase sempre faço uma pichação mais colorida, que até se aproxima um pouco do grafite, mas todas as vezes deixo uma frase ao lado, ou algo assim” explicou.

Pichação de Lizz no bairro Levada

 

De acordo com Lizz, pichar não é uma tarefa fácil e ela tem que lidar cotidianamente com o preconceito popular. A pichadora conta que sofreu um ataque virtual há cerca de três semanas, após aparecer de costas em um vídeo divulgado através das redes sociais. O conteúdo viralizou rapidamente e contou com mais de 70 mil compartilhamentos.

“Não gosto de lembrar do episódio. Eu estava em um ato de intervenção, mas as pessoas não entendem e comentaram coisas absurdas, nos estereotipando. Eu sei que existe um grande preconceito, mas penso que a população reproduz muita as coisas sem ter conhecimento acerca delas, apenas pelo senso comum. Isso não é uma postura correta” disse.

Comentários de internautas no vídeo

 

O pichador Dred, de 23 anos, afirmou que também já foi vítima de preconceito e  apedrejamento. “Estava pichando um muro abandonado e os moradores da rua começaram a atirar pedras em mim, para nem citar as coisas que diziam. Fui chamado de favelado, neguinho e ladrão. Não acho que isso seja justiça. O lugar é sim um patrimônio, mas estava abandonado. E estava abandonado exatamente pelo poder público, que criminaliza nosso picho. Queria que as autoridades olhassem de volta para aquelas pessoas” afirmou ele.

Para a professora de Desing Anna Maria Vieira, existem diversas questões acerca dessa temática que precisam ser trabalhadas pelo estado, como o direito à cidade. Segundo ela, o picho tem uma conotação política e é uma forma de manifestação individual, não de anarquia.

 “Aqui na minha rua, por exemplo, tem uma série de casas antigas tombadas e abandonadas, que são patrimônios públicos. Elas estão todas grafitadas e pichadas, e aí eu me pergunto: tudo bem que está em cima do patrimônio, mas ele está em ruínas. No momento em que um artista faz sua intervenção, de alguma maneira ele volta a chamar atenção para aquilo. Isso é um ato político” afirmou.

Para ela, a arte urbana valoriza e revitaliza, e a transgressão as vezes é necessária para o próprio artista.

“Em um caso de prisão, por exemplo, isso pode dar até satisfação para o artista, que vai sentir que aquilo tocou o suficiente para que tal ato fosse consumado. Às vezes isso é credibilidade para eles, que têm que transgredir para serem vistos e ouvidos. Creio que a população deve olhar sem preconceito ou indiferença, mas procurando entender aquilo e sua função social” disse.

Pichação de Lizz, "O povo preto é história de luta e resistência"

 

Além de professora, Anna é coordenadora de um projeto intitulado “Cidade e Signos: um intercurso pela arte”, concebido inicialmente por um grupo de alunos dos cursos de Teatro, Design, Arquitetura e Urbanismo. Segundo ela, hoje o projeto possui quatro vertentes, e trabalha sobre a frente de desenvolver a formação artística para cada uma das modalidades de arte urbana (picho, grafite, fotografia e performance).

Segundo a professora, o grupo possuí um caráter Intervencionista e goza de toda liberdade de escolha e criação.

“No último ato, nossos estudantes escolheram intervir no condomínio Jardins do Éden II, em Cruz das Almas. O intuito era o de chamar a atenção social, que já está anestesiada com aquela paisagem de degradação. Aquele condomínio está esquecido, e a população faz questão até de não olhar ou chegar perto. O edifício inacabado é um signo cada vez mais presente na cidade de Maceió” afirmou.

Os estudantes também já interviram em outros bairros da cidade e até em Campo Alegre, algumas vezes sob o convite de diretores e\ou proprietários de escolas, academias, creches e clubes – indicando a grande demanda por arte urbana na cidade de Maceió e demais municípios de Alagoas – assim como tomaram a iniciativa de grafitarem alguns muros e paredes da cidade.

Para Anna, o intuito maior do grupo é conscientizar através da arte urbana. “Vejo o grafite e a pichação como um grito para aquilo que está acontecendo na cidade. Ambos devem ser entendidos como denúncias, e não devem ser rechaçados. Nosso grupo quer conscientizar” disse.

“Em alguns países são reservados espaços para os artistas urbanos realizarem suas intervenções. Por que não aqui? O que não podemos é fingir que eles não existem ou tapar os ouvidos para o que as ruas têm a nos dizer. O entendimento sob o outro é cada vez mais necessário. Arte ou crime, o picho é um ato extremamente político e assim deve ser entendido” finalizou.

Projeto Cidade e Signos

*Estagiária