Uma drag queen como uma das artistas mais comentadas do momento. Um homem transgênero como personagem de destaque na novela das 21h da emissora mais popular do País. A discussão em torno da diversidade sexual e respeito à liberdade de gênero vem ganhando cada vez mais destaque nas rodas de conversa. Tanta visibilidade leva estas pessoas a levantarem a bandeira da não vitimização deste público. Uma das principais discussões é a entrada no mercado de trabalho.
Daniel Moraes Ferreira, 20 anos, diretor de arte, hoje trabalha em um órgão público municipal de Maceió. O jovem, que nasceu menina, começou sua transição há dois anos com terapia hormonal. Daniel acredita que por atuar na área de comunicação sua aceitação tem fluído normalmente. “Nesse meio as pessoas têm a mente aberta, o que me ajuda muito. Acredito que ter escolhido esse segmento só tem me ajudado”, disse. Confira trecho da entrevista no áudio a seguir.
O diretor de arte diz não à vitimização. “Muita gente acha que temos que provar que somos mais capazes que outras pessoas. Somos iguais a qualquer pessoa qualificada para exercer determinada função. Mas algo importante a se dizer, é que muitas vezes ficamos tristes com a falta de respeito e isso pode atrapalhar. Temos que lidar com questões internas e ainda enfrentar o mercado. É difícil ter que ser uma pessoa muita boa no trabalho, mas estar mal internamente, com problemas em casa com a família”, relatou o jovem.
Antes do atual emprego, Daniel trabalhou como freelancer e também como garçom. No restaurante, ele passou por momentos difíceis. “Foi no começo da minha transição, então foi complicado. Ouvi muitas piadinhas, muitas indiretas. Tive crises, ficava no banheiro chorando, mas me recompunha e voltava”, lembrou Daniel.
O jovem contou ainda sobre a relação com os pais. “Moro com eles, mas ainda é muito duro, pois não existe respeito. Eles fecham os olhos para quem eu sou. Sempre me chamam de filha, tudo no feminino”, lamentou Daniel. Ele acrescentou também que conta com o apoio dos três irmãos e da namorada.
Daniel, que na certidão de nascimento se chama Daniela, vai tentar a mudança do nome. “Vai ficar mais fácil e evitar constrangimentos. Assim que passar pelas exigências legais, quero mudar para Daniel”, finalizou.
Para a orientadora sexual Milka Freitas, o caso de Daniel, que mesmo com as adversidades conseguiu se inserir no mercado de trabalho, deve servir de exemplo. Ela também diz não à vitimização do público LGBT.
“Situações tristes temos muitas, mas temos que mostrar que há coisas boas também, que podem e servem de estímulo. Temos pessoas que vão lá e mostram que são capazes. Existem trans trabalhando, estudando e mostrando que tudo é possível. Hoje em dia temos mais acesso à informação e à educação, o que tem ajudado na aceitação desse público seja na vida social ou no mercado de trabalho. Esta evolução precisa ser mostrada”, ressaltou Milka. Confira trecho da entrevista com a sexóloga a seguir.
A orientadora sexual chamou a atenção para o fato de que muitas pessoas, por sofrerem preconceito na escola, largam os estudos e encontram na prostituição a única perspectiva de vida. “No colégio, mulheres trans são alvo de chacota. Para elas, se prostituir é a solução possível naquele momento. Mas temos aquelas que seguem com coragem e resiliência”, frisou.
Sobre a entrada de pessoas trans no mercado de trabalho, Milka acredita que essa realidade tende a mudar. “Os movimentos, mesmo segregados, estão cada vez mais atuantes, com a luta voltada ao público trans. O apoio familiar é fundamental para que pessoas fortes sejam criadas para lutar e entender que ninguém é maior que ninguém. Acredito sim que, futuramente, o mercado de trabalho vai agir com mais naturalidade. Não podemos vitimizar essas pessoas. Ainda bem que somos diferentes. Temos que excluir essa vitimização e transformá-la em vitória, em resiliência”, opinou a orientadora sexual.
Presidente da Associação Cultural de Travestis e Transexuais de Alagoas (ACTTrans), Natasha Wonderfull, 33 anos, concorda que a prostituição ainda é o meio de vida mais procurado pelas transexuais e travestis em decorrência das portas fechadas pelo preconceito no mercado de trabalho. Atuando há sete anos no programa Consultório de Rua, da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió (SMS), ela contou que, apesar do emprego estável, já passou por situações desagradáveis e chegou a ser demitida sob a justificativa de “dupla personalidade”.
“Tiro plantão no período noturno e recentemente fui contratada para um novo trabalho. Quando o dono da empresa descobriu que eu era uma mulher trans, resolveu me demitir. Disse que não dava para continuar porque eu tinha duas caras, dupla personalidade. É vergonhoso dizer que, em pleno século XXI, a prostituição é o ganha pão da maioria das travestis e transexuais de Alagoas. Mas isso existe por conta da transfobia. Ainda somos vistas como bonecas, mas infelizmente esquecem que somos como qualquer ser humano, que pagamos nossos impostos e votamos”, disse Wonderfull.
Para ajudar mudar a realidade das mais de 300 travestis e transexuais atendidas pela ACTTrans, a presidente recolhe currículos para tentar encontrar vagas de emprego, mas afirmou que nem sempre obtém êxito. "As empresas não aceitam quando olham a mulher e se deparam com um nome masculino no documento RG. Até em salão de beleza, que é um universo relativamente feminino, há preconceito”, acrescentou a representante do movimento.
Natasha Wonderfull também comentou sobre a vitimização. "A travesti e a transexual têm que se aceitar e se afirmar independente da sociedade", colocou.
Outro fato sobre a relação no mercado de trabalho apontado pela presidente diz respeito ao medo. “Conheço mulheres trans que, por medo, vão trabalhar vestidas de homem. O preconceito é grande, mas essa aceitação tem que começar dentro de nós. Sei que tudo é uma questão cultural e tudo começa dentro de casa. Se a família não aceita e não apoia, tudo na rua se torna mais complicado”, disse a transexual.
Maria Vitória Pinheiro nasceu em São Luís do Quitunde, uma cidade da Zona da Mata de Alagoas com aproximadamente 32 mil habitantes e situada a 52 km da capital. Hoje aos 24 anos, a profissional de beleza mora em Maceió e é um um exemplo de boa aceitação no mercado de trabalho. Por isso, descreve-se como uma mulher de sorte pelo que se tornou. Vick, como é conhecida, iniciou a automedicação com hormônios aos 16 anos e se deparou com dificuldades na cidade do interior: o preconceito da população e o medo da família em relação ao "o que os outros iriam pensar".
Ainda em São Luís do Quitunde, o primeiro trabalho de Vitória foi como telefonista e recepcionista de um comércio de gás de cozinha. Não durou muito tempo: em dois dias de serviço, foi chamada pelo chefe e teve a demissão comunicada: “não é por preconceito, mas você é diferente e não se encaixa”, esta foi a justificativa do patrão. Aos 19 anos decidiu morar em Maceió, onde conquistou seu espaço. Estudou, fez cursos profissionalizantes e hoje é avaliada como uma das melhores funcionárias em um salão de beleza situada na área nobre do bairro da Jatiúca.
“Infelizmente ainda há quem pense que as transexuais e as travestis são garotas de programa, transformistas, que não têm uma profissão. Nosso mundo não é o da prostituição, embora aconteça por conta da falta de oportunidade. Ainda assim, é preciso que cada uma se firme no meio que quer atuar, que estude e se profissionalize. O preconceito é grande, mas temos que lutar. Acho que tive muita sorte pelo que me tornei, pela mulher que hoje sou. Quem nos faz somos nós mesmas, não os outros. Vivo bem com minha família, sou bem aceita pelos meus colegas de trabalho e sou respeitada”, destacou Vick.
Vitória trabalha em um dos salões da empresária Elisângela Mendes, que tem 22 anos de atuação no mercado e dois estabelecimentos em funcionamento. A empresária contou à reportagem do CadaMinuto que antes não pensava em contratar transexuais, travestis ou gays, mas há nove anos mudou de visão.
“Eu julgava de forma errada, achava que eram boca suja, espalhafatosos e escrachados. Ate que um cliente gay se tornou funcionário do salão e tive outra visão. Hoje, todos têm nosso total respeito e não admitimos qualquer tipo de preconceito no ambiente de trabalho. São excelentes profissionais, de bom comportamento. Aqui, nossa prioridade é o respeito. Temos em nossa equipe gays, mãe de santo, evangélicos, transexuais e, para todos, a exigência é a mesma: respeito entre si e com os clientes”, enfatizou a empresária.
Elisângela faz elogios à atuação de Vitória e lembra que já viveu situações desagradáveis em relação ao preconceito por parte dos clientes. Antes de Vitória, outra transexual fez parte da equipe e, por estar em fase de transição, foi alvo de críticas e comentários. Hoje, segundo avaliou a empresária, a situação é diferente e reforça que em seu ambiente de trabalho o respeito à equipe é tão regra quanto o bom atendimento.