Caro leitor, peço licença para dar uma pausa no assunto política e falar de Literatura. Neste campo, sou fã de biografias e, como fã de Engenheiros do Hawaii, acabo de ler o belo trabalho do colega jornalista Alexandre Lucchese sobre a trajetória desta banda que teve inúmeros sucessos nos anos 80, 90 e 2000, mas ao mesmo tempo enfrentou uma avalanche de críticas dos “especialistas” em função de muitas posturas corajosas. Por sinal, foram estas posturas que me fizeram admirar ainda mais o trabalho de Humberto Gessinger, Carlos Maltz, Marcelo Pitz e Augusto Licks. Trata-se de Infinita Highway: Uma Carona Com Os Engenheiros do Hawaii. E que carona, meus amigos...

Afinal, como não se emocionar com quem tem a coragem de lançar um novo olhar sobre o mundo no qual se estar inserido e pagar para ver se o público vai gostar ou não. Foi assim que as letras de Gessinger e a sonoridade da banda entraram de “sola na sala VIP”, como anuncia um dos versos da canção Sala VIP do Várias Variáveis. Todavia, antes disso, Engenheiros do Hawaii já fazia estragos nos ouvidos mais sensíveis às ideologias e convicções da moda. Faziam isso sem descuidar da forma poética e da ousadia sonora.

Em pleno anos 80, num cenário onde o rock evocava para si o espírito revolucionário, o trio incomodava com canções que, se lançadas hoje em dia, o faria ser taxado imediatamente de “coxinhas”. Duvidam? Escutem o primeiro verso de Toda Forma de Poder onde são atacadas as visões totalitárias de esquerda e de direita ao ironizarem Fidel e Pinochet e ainda emendarem: “Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada”. 

Eu canto esse verso ainda hoje todas as vezes que escuto Marilena Chauí, por exemplo. 

Não acaba por aí: a própria capa do primeiro álbum - O Longe Demais das Capitais - era uma ironia das mais inteligentes: num rock urbano, aqueles que se anunciavam distante dos horizontes e clamavam viver no velho mundo por não entenderem “a terceira guerra, o terceiro sexo, o terceiro mundo”, pousavam tão arrumadinhos em uma paisagem bucólica que destoava de todo e qualquer progressismo. É o espírito presente em Fé Nenhuma que, para mim, é a melhor canção de Longe Demais das Capitais. É o que se escuta em Crônica. Em Fé Nenhuma canta Gessinger: “não acredito no seu jeito revolucionário”. Em Crônica: “Você que tem ideias tão modernas, é o mesmo homem que vivia nas cavernas”.

E era assim que Gessinger chutava o balde e ironizava os profetas e messiânicos do seu tempo com o conselho: “Ouça o Que eu Digo: não ouça ninguém”. É até absurdo que alguns vejam Gessinger como messiânico. Esta mesma coragem se via na viagem existencialista de A Revolta dos Dândis, numa referência direta a Albert Camus. Por sinal, em Ouça o Que eu Digo: Não Ouça Ninguém, uma das pérolas é Tribos e Tribunais que manda ver ao afirmar que fascistas de direita e fascistas de esquerda são todos iguais. Hoje, a discussão é mais o fascismo é de direita ou de esquerda? Gessinger simplesmente diz: é uma visão totalitária e valorizava o indivíduo, inclusive ao cantar a solidão angustiante e necessária presente em Vozes, no álbum A Revolta dos Dândis. Aliás, A Revolta... e o Ouça..., na minha opinião, formam um único disco que foi lançado em partes.

Assim, nascia uma banda que, apesar dos acasos, soube desenhar um mapa com sentido e riqueza de detalhes. Como não se emocionar com Ninguém=Ninguém e a referência ao brilhante George Orwell e sua Revolução dos Bichos: “Todos iguais, todos iguais, mas uns mais iguais que os outros”. Ao mesmo tempo em que usa uma frase clássica da Literatura, Gessinger e os demais engenheiros havaianos possuem a coragem de brincar com o aforismo: “tão desiguais, tão desiguais”. Pequenas sutilezas para a qual o rock brasileiro não estava acostumado. Por sinal, em ambiente onde todos querem ser heróis, morre a autocrítica, a autoironia e o humor fica refém de um politicamente correto que apenas enalteça heróis. Quem entende isto enxerga o quanto foi provocativo o verso que diz que “a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes”.

Mais que isto. Sabe o quanto é necessário para quem compra essa viagem saber que está em um “exército de um homem só”. E nesse exército, quem ri de si mesmo tem uma grande arma. Os Engenheiros do Hawaii também sabiam fazer isto dentro da engrenagem que apresentavam ao público. O Papa é Pop acabou sendo uma ironia justamente por ter se tornado um hit Pop que não poupou ninguém. E o Pop também não poupou os Engenheiros. Afinal, a viagem era intensa e cheia de desgastes. 

Lucchesi, de forma brilhante, entra nos detalhes destes desgastes, desfaz visões míticas sobre a banda, tornam Gessinger, Maltz, Licks e Pitz mais humanos, dando uma lição aos tietes e trazendo reflexões aos fãs.  Sim, eu separo as duas categorias. A primeira mitifica. A segunda, admira e se sente parte do trabalho, com direito de cobrar...e como Humberto Gessinger e Carlos Maltz “sofrem” com estas cobranças. Como isto só demonstra ainda mais a força desses artistas que - graças a Deus - se negam a virar covers de si mesmos e seguem nos brindando com coisas maravilhosas. Eu mesmo já cobrei muito.

Em um papo que tive com Gessinger aqui em Alagoas até me senti no direito de indagar: “cara, por que cargas d`água o Pouca Vogal não vai ter pelo menos um segundo disco. É muito bom”. Lembro que Humberto riu e disse: “ninguém controla a onda e a galera se liga muito na espuma que ela forma”. Nunca esqueci da resposta. Por sinal, foi uma honra mediar um papo de Gessinger com um auditório lotado. Em poucos minutos se constatava a timidez de Humberto, tão bem descrita por Lucchesse, e a sagacidade das respostas ácidas e bem formuladas, mas - creio eu - sem o interesse de querer “causar”. Aquilo é ele e ponto final.  

Isto só é possível de se enxergar na obra porque o autor da biografia da banda não se importou com a tutela de nenhum dos integrantes dos engenheiros. Escreveu o que quis e como quis, respeitando fontes primárias e depoimentos. Jornalismo puro.

Tive a honra também de dar pitacos nos livros recentes de Maltz e acabamos nos tornando amigos. É impressionante como o trabalho que Maltz hoje desempenha é essencial ao momento em que estamos vivendo. Suas ricas reflexões não levam em conta o que os outros vão pensar do que ele pensa, pois se tornou um cara que busca a verdade e o autoconhecimento. É possível enxergar isto também nos recentes trabalhos de Humberto Gessinger. O Insular é um grande disco conceitual que fala muito sobre a passagem do tempo e isto não é por acaso. O fim rendeu novos começos. 

É impossível dizer que Engenheiros do Hawaii acabou ou acabará. Afinal, o que é uma banda? Os músicos? As canções? Os fãs? A soma de tudo? O fato é que o livro de Lucchese mostra que, apesar dos acasos, os Engenheiros foram em essência tudo aquilo que poderiam ter sido e tiveram um destino inevitável diante das personalidades que colidiram naquele microcosmo. Por isso que torço que o trio nunca se junte para esses projetos de resgate da história para durar apenas uma noite. Engenheiros não é isto. Olha eu cobrando aqui! 

Apesar de Os Engenheiros muitas vezes não figurarem nas “coletâneas de rock brasileiro” por puro ranço de alguns “entendedores de plantão”, eu ouso dizer: quer entender o espírito do que foi o rock dos anos 80, 90 e início de 2000 neste país, escute Engenheiros do Hawaii. É que eles estavam preocupados demais em soarem sinceros e acabaram sendo “mais sinceros do que poderiam ser”. Obrigado Lucchesse por contar esta história!

Estou no twitter: @lulavilar