Letícia Bahia do Blog Reflexões de uma Lagarta escreve:
Estou na rua Mourato Coelho. Volto pra casa a pé, depois de algumas cervejas. Já passa da meia-noite e a rua está deserta. É quando o vejo: todo estatelado no chão, vômito secando na calçada que lambe a boca, roupas brancas e cabelos loiros. Estará dormindo? Estará vivo? Não há ninguém com ele, e penso que uma atitude minha pode resultar em ambulância, hospital, soro na veia, ressonância magnética na cabeça. Posso até mesmo salvar sua vida, se vida houver.
Meu namorado está comigo e não parece hipotetizar o mesmo drama que eu. Diz que é apenas um bêbado, mas eu insisto para que verifiquemos o status do corpo. Aproximo-me de sua boca fedida e sinto sua respiração. Dorme profundamente, um sono que provavelmente só dormira quando bebê. Pergunto se não devemos revistar seus bolsos, procurar por um endereço ou pelo telefone de uma mãe aflita. Meu namorado quer ir embora, e então faz a pergunta que me desmancha feito papel molhado: "você faria tudo isso se ele fosse negro?".
A resposta exata não é "não faria". A resposta mais precisa é "não fiz". Eu nunca fiz nada em todas as centenas de vezes que cruzei pessoas negras largadas na sarjeta. Estou de tal modo acostumada a ver estas pessoas nesse lugar - físico e simbólico - que naturalizei a situação e não me sinto impelida a fazer nada. Não parece haver nada para consertar. É triste, por certo, mas é como é. O menino branco, este não! Este está no lugar errado! Ele não pertence à rua, e a sujeira não lhe pertence. Pessoas brancas e loiras - eu aprendi - não são da rua. É claro que minha reação também leva em consideração as roupas, o andar, o aspecto do sujeito - o que também é grave. Mas a pergunta que ouvi precisa ser respondida com honestidade: sim, a escala de melanina está entre os meus critérios. Se isto não é racismo, estou no aguardo da nova definição. Eu sou racista, mas, estou tentando deixar de ser.
Fonte: http://reflexoesdeumalagarta.blogspot.com.br/2015/03/eu-sou-racista-vol-ii.html?m=1