O texto dessa semana foi escrito ano passado e publicado no Jornal dos Economistas do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, em edição especial dedicada ao tema das mobilizações sociais [N° 288, julho de 2013, clique aqui para conferir o jornal na íntegra]. Diante da continuidade das manifestações e possibilidades de acirramentos, em 2014, achamos oportuna a sua exposição novamente, agora nesse novo espaço de análises, ideias e debates sobre economia política em Alagoas. A versão apresentada foi alterada em alguns poucos trechos. Vamos então aos argumentos.
A erupção e intensidade dos protestos sociais em várias e importantes cidades brasileiras, em plena realização da Copa das Confederações, ano passado, provocaram perplexidades, dúvidas e muitas expectativas na população brasileira, na opinião pública, nacional e estrangeira, e em nossos governantes. Desde as mobilizações políticas a favor do impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, o país não assistia algo parecido. De todos os ângulos e direções, partiram análises, opiniões e reflexões sobre os acontecimentos e suas consequências.
As análises mais apressadas buscavam semelhanças com os movimentos sociais ocorridos em países como Tunísia, Egito e Líbia. Os eventos, por exemplo, na cidade turca de Istambul, ano passado, serviram de referência para os intelectuais pós-modernos concluírem estarmos, definitivamente, no radar das grandes manifestações mundo afora. Pode-se concordar que instrumentos e meios operacionais de mobilização são semelhantes, mas complicado concluir que as causas, motivações e determinantes são as mesmas, aqui como acolá.
Certamente, algo de muito estranho acontece com o processo civilizatório brasileiro recente. Desde 2003 nos acostumamos a ouvir vozes, oficiais e não oficiais, falando da exuberância do emprego, do sucesso das ações do governo, do alto grau de satisfação do povo etc. Essas seriam as razões para o desempenho dos últimos dois pleitos eleitorais do Partido dos Trabalhadores. Não obstante isso, a realidade parece plasmar-se por outras mãos e enxergada por olhos mais vulpinos. É o que pode ser deduzido pelos protestos que explodiram nas ruas das cidades brasileiras até agora, pelos números que indicam um comportamento baixo do PIB per capita, nos últimos 20 anos, e a incompletude, ou despedaçamento, dos serviços de saúde, educação e segurança, sem falar da ainda precária infraestrutura da maioria de nossas rodovias, ferrovias, portos, aeroportos etc. Como explicar esse paradoxo?
Um dos elementos fundamentais é a continuidade do Governo Federal em agir eficientemente e disciplinadamente, sobretudo no ordenamento das finanças do Estado, de modo a garantir fluxos regulares de pagamentos de vultosos volumes de juros e amortizações [que nunca amortizam!] aos credores da dívida pública brasileira. Isso é reforçado pelos discursos ideológicos dos homens de negócios e financistas reafirmando a correção dessa política, a defesa apaixonada da ortodoxia fiscal e monetária como medida para a diminuição da vulnerabilidade externa do país [1] . Assim, qualquer alternativa levar-nos-á ao caos, dizem!
De outro modo, os trabalhos voltados para maior conhecimento da realidade brasileira estão se tornando extremamente casuísticos, formais e positivistas. Na academia, em geral, a preocupação é escrever para pontuar no sistema de avaliação dos cursos de Pós-Graduação no país. O produtivismo está atravancando a criatividade na medida que o tempo é premido pela urgência por se publicar mais e mais. Da maioria das análises sobre economia brasileira, por exemplo, tem-se a sensação de que nada no país parece muito ruim ou que bastaria mudar de rumo nesse ou naquele aspecto para a obtenção de resultados melhores. Concluem, quase sempre, que as intervenções, na realidade, estão sendo corretas e legítimas, apenas carecendo de pequenos ajustes no campo da gestão, principalmente macroeconômica.
Alguns aspectos podem ser mencionados para se ter uma avaliação crítica mais apurada de alguns problemas estruturais. Por exemplo, apesar do Sistema Único de Saúde [SUS] ter sido implantado há mais de duas décadas, as reflexões são sempre circulares, com abordagens relativas à forma de implantação neste ou naquele lugar; como se deu o processo de descentralização plena para o município tal ou qual; como foram formados o Conselhos Municipais de Saúde etc. Na verdade, desde 1988 que o Sistema de Seguridade Social [SS] se encontra muito distante de ofertar serviços de boa qualidade. Os seus três componentes [Previdência Social, Saúde e Assistência Social] têm dificuldades relativas de funcionamento, mas não é por falta de recursos financeiros.
Entre 2008 e 2011, por exemplo, as receitas da Previdência Social cresceram 41,4%, enquanto os benefícios aumentaram em 37,5%, desfazendo, em parte, o mito que temos déficit. Mais importante: o resultado fiscal na SS, no mesmo período, foi de 231,2 bilhões [12,9% do total das receitas do governo]. Subtraindo 176,5 bilhões da Desvinculação de Recursos da União [DRU], o saldo líquido para o período foi de 54,7 bilhões[2]. Pelo menos no campo da saúde os recursos existem, mas eles são exauridos: i] pelo superávit primário do governo federal, ii] pela ineficiência na gestão iii] e pelas redes de corrupção.
Assim, quando se investiga sobre os resultados da política pública de saúde, a maioria das análises busca sempre destacar que a implantação do SUS levou ao aumento expressivo no número de atendimentos, particularmente aqueles de média e alta complexidade. As análises nunca respondem como o sistema funciona e em que condições; como o orçamento é executado e os recursos aplicados. Nossos estudos não estão muito preocupados com questões desse tipo, salvo honrosas exceções. Por isso o bate-boca quando o Programa Mais Médicos foi adotado ano passado, pois ele refletiu a escassez do debate mais qualificado sobre o assunto, principalmente por parte daqueles que levantaram suas críticas. A falta de estudos mais estruturais é estendida para outras áreas, a exemplo da educação, segurança pública, infraestrutura etc. Mais preocupante é que o governo federal e os órgãos de financiamento estão reféns dessa agenda elaborada por boa parte das universidades, institutos de pesquisa e, principalmente, consultorias.
Desenvolve-se, assim, uma rede analítica de difícil dissolução porque o resultado de um trabalho sempre alimenta outro, com efeitos circulares, estabelecendo “verdades” pouco fundamentadas na realidade, mas consolidadas. Geralmente, tentam “contar uma história, uma narrativa, apontar diagnósticos” com base em um empirismo estatístico-modelar, completamente distante da realidade concreta. Por essa razão Gonçalves [2013: viii] afirma que no país “a marcha da insensatez baseia-se na ilusão de que há desempenho apropriado, velocidade adequada, prumo certo e rumo correto”. Ainda que “as visões e análises sobre a economia e a sociedade no Brasil são, na maioria, incapazes de fazer a distinção entre pouca verdade, alguma má-fé e, principalmente, muita ilusão” [p. 2].
Existe uma crença quase generalizada de que ações dos governos funcionam mal em razão da falta ou da insuficiência de recursos; assim, a única forma de consertá-las é aumentando o orçamento de gastos.
Quando eclode uma crise fora do padrão normal da crise permanente na saúde, com óbitos em massa e/ou os corredores servindo de enfermarias em hospitais públicos; na educação, quando se divulga, os horrores das estatísticas de desempenho dos alunos da escola pública; e na segurança, quando o crime organizado produz ações sincronizadas da mesma natureza por período longo ou o número de homicídios cresce assutadoramente em várias capitais do país, nossos governantes municipais, estaduais e federais ecoam, em uníssono, um discurso bastante conhecido: “a tragédia é resultado da falta de recursos”.
Nesse sentido, o apelo é para que o Congresso brasileiro e o Tesouro Nacional sejam mais generosos quando da elaboração do orçamento ou nos percentuais de vinculação de recursos às referidas áreas. Invariavelmente, essa pregação é validada pela sociedade não usuária dos serviços públicos[3], pela mídia e pelos órgãos de controle. Com isso, tanto a inépcia administrativa, quanto a imoralidade dos gestores e gerentes públicos, como a verdade do destino dos recursos públicos, ficam todas protegidas.
Ademais, o crescimento exponencial de nossas principais cidades nas últimas três décadas determinou mudanças radicais na paisagem urbana, causando movimentos de ascensão e queda de espaços econômicos e sociais[4], cabendo uma reestruturação espacial completa dos equipamentos públicos, bem como a ampliação dos espaços de convivência coletiva .E foi por esse lado que as mobilizações sociais começaram, questionando a falta de direitos à acessibilidade e mobilidade urbanas.
Quando o povo foi às ruas estava questionando, na verdade, por que os serviços públicos de consumo coletivos oferecidos pelo Estado estão aquém da demanda social e são de péssima qualidade e para onde estão indo os recursos públicos. Talvez seja por essa razão que o alvo das criticas não seja específico a esse ou aquele governo em particular, se o problema é federal, estadual ou municipal. O questionamento é estrutural, sistêmico. Não é pontual, focal; é bem ao contrário do curto alcance das políticas publicas adotadas nesse país nos últimos 20 anos.
Por exemplo, enquanto na saúde os resultados nefastos são imediatos e visíveis, no caso da educação o mau ensino ofertado pelo Estado, nas três esferas de competência, produz efeitos de forma mais lenta, mais suave, pouco perceptível. Neste momento a sociedade começa a pagar o alto custo perpetrado pela irresponsabilidade na gestão e na gerência daqueles que vêm conduzindo os nossos destinos nas últimas duas décadas. Os efeitos já são sentidos na nossa tragédia cotidiana e os protestos sociais representam a rebelião contra esse estado de coisas. O nosso Modelo Liberal Periférico de desenvolvimento está sendo, pela primeira vez, questionado pela sociedade. As mobilizações representam um movimento sistêmico que reivindica uma crítica estrutural legítima e soluções coletivas.
[1] Sobre o assunto, ver a mais nova e excelente análise crítica de GONÇALVES, Reinaldo. Desenvolvimento às Avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento. Rio de Janeiro: LTC, 2013. Nela o autor destrincha as características de nosso Modelo Liberal Periférico (MPL). Escrevemos uma resenha crítica desse livro que se encontra publicada na Revista de Economia Contemporânea do Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro [clique aqui para o acesso]
[2] JÚNIOR, Geraldo Medeiros; ALVES, Renato Augusto da Silva. Gestão da Seguridade Social e a necessidade do superávit primário: uma análise sobre os resultados de 2011. Revista Brasileira de Administração Política. Vol. 6, Salvador: EAUFBA, abr./2013, pp. 57-69.
[3] Diferenciamos a sociedade não usuária porque a parte da sociedade usuária dos serviços públicos [a maioria] sabe muito bem que o problema não está na falta de recursos. É ela que frequenta, diariamente, os postos de saúde, os hospitais, a escolas, as delegacias e as cadeias públicas.
[4] Conferir, por exemplo, o documento Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro, produzido pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, que denuncia mais um assalto ao espaço urbano em nome dos grandes interesses que envolvem investimentos e negócios privados. [para acessar o documento basta clicar no título]