E se na hora da cirurgia que deveria ser feita por um médico experiente aparece um estudante de medicina do segundo ano? E se para fazer aqueles cálculos complexos na obra de um grande empreendimento quem realiza é outro estudante de engenharia, também do segundo ano, ao invés do engenheiro responsável da obra? E quando se espera que um piloto experiente conduza o avião e na cabine se tem um estudante da escola de pilotos? E se na hora de um show de um artista de grande talento, aparecesse seu “cover”, cantando com quase igual maestria?
E se na causa em que se decide a liberdade ou a guarda de um filho, ao invés de um magistrado, experiente, tarimbado, conhecedor das leis, estivesse ali a escrever a decisão com seus fundamentos e motivos, um aluno de Direito?
Pode parecer incrível, mas a justiça brasileira tem funcionado assim. Alunos têm praticado atos destinados a juízes e promotores de justiça. Investidos na qualidade de “assessores” acabam desempenhando o papel dos verdadeiros juízes e órgãos acusadores.
É a justiça dos estagiários. Ou, quando muito “mais nobres”, dos “assessores”.
Não queremos aqui desmerecer o papel desempenhado pelos estudantes. Muito longe disso. Acho de extrema importância que estejam cada vez mais empenhados em estar em contato com a realidade da nossa justiça. O que estou ressaltando é que não se pode delegar a eles algo indelegável, ou seja, o poder de decidir a liberdade, a vida, os alimentos dos cidadãos, o que para mim é inadmissível. Que os estagiários das varas auxiliem os juízes e promotores é uma coisa, mas daí a passar a exercer um poder só conferido aos magistrados e órgãos do MP é outra bem diferente.
E digo isso sem fazer acusações contra a magistratura ou ao ministério público, mas tem sido recorrente o número de alunos que nos procuram para dizer que estão efetivamente “decidindo” as coisas, onde os juízes, quando muito, só fazem assinar as decisões. Outro dia mesmo, pelo corredor do fórum um de meus alunos em tom sarcástico me desafiou dizendo que estava com um processo de um cliente meu aonde ele ia sentenciar. Devolvi a pilhéria dizendo que eu também estava com a prova dele para corrigir. Ele sorriu, mas não sei se entendeu a piada.
Outro caso foi de uma aluna que após conhecer as dependências do presídio alagoano disse ter ficado chocada com aquilo e iria “refazer” a “sua sentença” a partir dali para diminuir a pena dos que “ela” estava a condenar.
Outro, foi a de um assessor que se disse cansado de ser assessor e que não via a hora de passar em um concurso para juiz para deixar de fazer sentenças. E se ficássemos citando exemplos aqui, não pararíamos mais.
O próprio ex-ministro do STF Cesar Peluzo afirmou que quem sentenciava em seu gabinete eram seus assessores em entrevista nas páginas amarelas de uma revista de grande circulação nacional e afirmou ainda que era impossível que ele pudesse ler todos os casos que chegavam para sua decisão.
Lógico, que tudo “supervisionado” pelo magistrado. E depois por ele “assinado”.
Daí a pergunta? Então, quem está decidindo o quê na justiça brasileira?
Sei que os reclamos da magistratura têm sido enormes para atingir cada vez mais as metas do CNJ que tem estabelecido regras cada vez mais desproporcionais para uma justiça que de obsoleta está quase impraticável.
Conheço também a realidade da justiça brasileira, e principalmente alagoana, sem estrutura, sem pessoal, sem logística, mas não podemos e não se pode admitir que o papel principal do magistrado seja delegado a outra pessoa por ele a fim de que tenhamos mais quantidade do que qualidade das decisões.
O fato de o juiz assinar as decisões não significa que ele as tenha confeccionado, e é isso o que me preocupa, pois sabemos que os magistrados são pessoas a quem confiamos a última palavra das contendas humanas e sociais, sem desmerecer, é lógico, o estudo dos estagiários e assessores, mas estes não estão prontos para o desempenho grandioso como tal.
Quem decide e deve fundamentar suas próprias decisões é o magistrado, principalmente quando os casos envolvem liberdade, vida, filhos, alimentos e questões complexas que só alguém com experiência e conhecimento podem fazê-lo, para além de uma aplicação da letra fria da lei. SE assim não fosse, não precisaríamos de juízes e sim de computadores com respostas lógicas e objetivas ao se questionar a aplicação da legislação.
Mal comparando, foi como em uma ligação que fiz para meu irmão contando que estava começando a correr maratonas, e ele, bem humorado como sempre, respondeu dizendo que também tinha começado a correr, mas que para tanto tinha contratado alguém para fazer isso por ele, e que só naquele dia o “corredor dele” já tinha feito 10 quilômetros.
Pois é assim que hoje tenho visto com alguma preocupação a justiça brasileira, secundada a um plano quantitativo de decisões fundamentadas por outros que não aqueles cuja confiança lhes foi legitimada.
Porque na hora de bater o pênalti da vida de cada um, não queremos o pseudo jogador, ou o amador, e sim o profissional habilitado para tal desiderato. Se o gol vai sair, não sabemos, mas a confiança depositada não foi outra senão de que naquele momento crucial, quem vai decidir chutar, como chutar e para onde chutar é alguém que detém a legitimidade para tanto.
De outro modo, a justiça de que tanto se espera respostas vai continuar fazendo seu vestibular interminável de calouros e acabar se perdendo na sua própria irracionalidade.