Recentemente, travei um debate no Facebook sobre a publicidade infantil. Como vocês sabem, sempre defendo a liberdade de expressão. Acho que a tentativa de barrar a publicidade infantil é só mais uma forma de censura. Mas um dos argumentos que usei, e que causou polêmica, em defesa da publicidade, foi o de que os pais estão cada vez mais ausentes e não conseguem dizer não para os filhos. Daí buscam no estado a regulação que eles deveriam fazer em casa. Esse argumento está num texto muito bom, que reproduzo agora para vocês. Na verdade, eu queria era ter escrevido primeiro o texto abaixo. Como não o fiz, não saberia explicar com melhores palavras.

Boa Leitura!

Em defesa da publicidade infantil

Por Joel Pinheiro da Fonseca (do site do IMB)

As crianças brasileiras devem estar mais frágeis do que nunca. Por isso nossos excelsos legisladores têm se debruçado sobre um projeto de lei que, se passado, proibirá toda e qualquer publicidade voltada às crianças (PL 5921/2001). Parece um pouquinho excessivo, talvez? Querendo ou não, gostando ou não do fato, ele já está fora de nossas mãos, e depende apenas do aval de deputados. Um pequeno lobby militante se formou em torno de uma ideia, fizeram barulho o suficiente para convencer algum deputado, e é bem capaz que, em breve, tenhamos uma lei universal e radical que a maioria nem sabia que seria votada. Um belo dia nos tiram o ovo com gema mole; em outro, a sacolinha do supermercado foi banida; em outro, não existe mais propaganda infantil. São as maravilhas da democracia à mercê do ativismo.

Mas enfim, discutamos a tal lei: deve a publicidade voltada à criança ser proibida? Sim, dizem os representantes de ONGs como o coletivo Infância Livre de Consumismo (ILC), um "grupo de mães ativistas":

"A publicidade dirigida ao público infantil é danosa porque pressiona as crianças a desejarem cada vez mais bens de consumo, associando-os a um discurso enganoso de alegria, felicidade e status social. Esses bens de consumo podem ser alimentícios, de vestuário, brinquedos ou até mesmo itens para adultos anunciados para as crianças, que tornam-se promotores de tais produtos, indicando-os aos pais. Além de trazer sofrimento às crianças que não podem adquirir esses bens devido à falta de recursos financeiros, essa pressão causa estresse familiar e não pode ser devidamente elaborada pelos pequenos, cujo senso crítico ainda está em desenvolvimento."

Em primeiro lugar, o discurso é, no mínimo, exagerado. Vejam: minha geração cresceu assistindo à TV entre fins dos anos 80 e meados dos 90. Pegamos em cheio propagandas muito mais diretas e desavergonhadas que as atuais. Propagandas que não se preocupavam, nem por um segundo, em dar a impressão de que tinham alguma finalidade educativa ou lúdica: seu negócio era vender, vender, vender, apelando para tudo, mesmo para a inveja e a ostentação descaradas. Testemunhamos inclusive a propaganda mais nefasta e chantagista da história do capitalismo: nela, um menino convencido mostrava ao espectador uma tesourinha do Mickey, enquanto se gabava cantando o refrão "eu tenho, você não teeem!". Bons tempos!

Na minha classe, embora nem todos tivessem a tesourinha (era o meu caso), todos entravam na brincadeira de cantar o slogan. Ninguém ficou traumatizado; ninguém sofreu ou criou "estresse familiar". E se uma criança fizesse birra, implorasse aos pais por mais aquele presente, e se por algum motivo os pais não quisessem satisfazê-lo, seria uma oportunidade excelente para ensinar ao filho sobre as contrariedades da vida, sobre o valor do dinheiro, sobre ter prioridades e paciência. Hoje em dia a situação é exatamente a mesma. O que mudou é que muitos pais não se sentiriam à vontade para dizer esse "não" pedagógico. E por isso precisam apelar: segundo o projeto de lei, a propaganda infantil é "coação ou chantagem para a compra dos bens anunciados". Mentira; qualquer criança pode comprová-lo. A grande questão é por que alguns pais, que inclusive cresceram expostos à publicidade e portanto lembram muito bem que ela não os coagia, sentem a necessidade de repetir tais exageros. Voltarei ao tema mais adiante.

Diz o site do ICL que a criança pequena não sabe distinguir o verdadeiro do falso numa propaganda.

"[O] marqueteiro, que estudou vários anos e em geral fez curso superior, é um especialista em psicologia infantil, estuda os hábitos, conhecendo profundamente os desejos e aspirações de seu público-alvo. [...]Do outro lado, está a criança, geralmente solitária, indefesa e vulnerável, pois ainda não aprendeu as manhas do mundo adulto e acredita no que lhe é dito e mostrado. A disputa é covarde."

É verdade: a criança nem sempre distingue o verdadeiro do falso em uma propaganda. Sei por experiência própria. E sabem como a criança constrói o aparato crítico para discernir realidade e discurso? Com a experiência. Quando eu era pequeno, entrou no mercado o sorvete Frutilly da Kibon. Na propaganda, um menino mordia o picolé e dele saía um fantasminha camarada que lhe realizava alguns desejos. Fiz questão de que meu pai comprasse o picolé mágico na nossa próxima ida à padaria. Mais tarde, em casa, quando fui comê-lo, decepção: nenhum fantasminha. Aí a ficha caiu: não havia fantasminha; a propaganda mentira para mim!

Haverá melhor lição do que essa? O que aconteceria comigo se tivesse esperado até meus dezoito anos para finalmente assistir ao comercial de picolé?


Propaganda: parte normal da vida


A publicidade faz e sempre fez parte da vida das crianças. Desde pelo menos 50 anos até hoje todas as gerações cresceram em meio a intensa publicidade de massas. Se a vida em família piorou na última década, se as crianças estão com mais problemas psicológicos, se os pais não sabem o que fazer, não pode ser, portanto, culpa da propaganda.

Notem que há, inclusive, alguns exemplos de propaganda que os mesmos pais que querem banir a publicidade infantil devem achar magníficos. Falo das campanhas insistentes e onipresentes em duas áreas específicas: meio-ambiente e saúde. Na minha infância isso já existia, mas hoje em dia é praticamente impossível encontrar qualquer programa, livro ou peça de teatro infantil brasileiro que não faça propaganda ecológica ou de saúde (e pode apostar que há diversas empresas de sabonetes que se beneficiam dos apelos incessantes de que se lave as mãos a todo instante).

Não tenho nada contra essas mensagens. Irrita-me um pouco a onipresença desse discurso e o tom de sermão ou alarme aos quais ele sempre vem associado, mas, fora isso, acho que ele está essencialmente certo. Estou apenas apontando um exemplo de propaganda na vida das crianças, às quais elas estão sujeitas mesmo dentro da escola, mesmo no consultório do pediatra e mesmo na relação com os pais, e que todo mundo aceita.

Por acaso a criança tem discernimento para saber se a reciclagem do lixo realmente promove um mundo melhor, ou se ela, em muitos casos, promove apenas a ineficiência no uso dos recursos? Alguma criança entenderá profundamente o mecanismo da vacina? E no entanto lá está o Zé Gotinha, personagem publicitário amado por todos.


Os benefícios da propaganda infantil


Afinal, a propaganda de produtos infantis tem algum valor? É claro que sim. Em primeiro lugar, ela cumpre a função de toda propaganda: informar o consumidor sobre quais produtos existem, para quê servem e persuadi-lo a experimentá-los. Novos brinquedos e jogos dependem da propaganda para que sejam conhecidos. Proibir a propaganda é comprometer a capacidade de novos produtos serem lançados no mercado. Para quê investir em um novo brinquedo se ninguém ficará sabendo de sua existência?

Alguém pode dizer que a propaganda não apenas informa, como mexe com as aspirações do espectador. E isso é verdade. Digo mais: não fosse por toda a dramatização em volta de brinquedos simples como bonequinhos articulados (que nas propagandas apareciam com cenários realistas, sons, e brincando quase que por conta própria), cairia o apelo deles para as crianças. Mas a criança, uma vez que tenha o bonequinho, aprende a brincar com ele nas condições reais de seu quarto ou casa, e passa a gostar muito de brinquedos que ela só desejou originalmente porque a propaganda assim lhe inspirou. A propaganda infantil usa uma linguagem com a qual a criança pode se relacionar: mostra as potencialidades contidas num brinquedo e como elas podem ser exploradas. A criança bem sabe — ou logo aprende — que, em sua casa, não poderá fazer o mesmo exato uso dele que ela vê na propaganda, mas isso não impede que ela se divirta.

Ninguém tinha a coleção completa de bonequinhos das Tartarugas Ninja: as brincadeiras envolviam bonecos de várias séries incongruentes, e de tamanhos diferentes; sem rochedos cenográficos como os das propagandas, a cama fazia a vez de montanha; uma parte mais clara do chão, lava borbulhante. As crianças se viram com o que têm; a fantasia do comercial serve como uma sugestão, uma possibilidade que pode ou não nortear a brincadeira.

Outro efeito bom da publicidade infantil é que ela permite que exista, na grande mídia, espaços destinados às crianças. Uma hora de desenhos animados é assistida basicamente por crianças; se um canal não puder veicular propaganda para crianças nesse horário, para quê ofertar essa hora? Uma revista infantil deriva parte de sua renda de propagandas; sem propagandas, menos revistas infantis serão viáveis. Em consequência, cai também o financiamento de programação infantil, pois há menos distribuidoras e veículos de informação dispostos a pagar para poder veicular aquele conteúdo.

Os ativistas querem beneficiar as crianças. Mas, com suas medidas, as crianças saem perdendo; com menos opções de programas, menos horários na TV e revistas destinadas a elas, menos brinquedos no mercado e menos meios para descobrir que brinquedos existem e por que eles deveriam lhes interessar.

O real motivo da campanha

Propaganda infantil não é novidade. Se as crianças e famílias de hoje em dia passam por problemas, a culpa não é da propaganda. Ela tem que ser um bode expiatório para alguma outra deficiência de fundo.

A meu ver, há uma mentalidade (gerada talvez em parte pela própria ideia do estado provedor e protetor) de minimização absoluta dos riscos, dos perigos e dos desgostos da vida que aumenta o custo (principalmente mental) dos pais, sem trazer grandes ganhos — e talvez com perdas — para os filhos, conforme argumenta o economista Bryan Caplan em Selfish Reasons to Have More Kids. Hoje em dia, a preocupação e o medo de muitos pais para com seus filhos chegaram ao nível de neurose. Se os pais estão incapazes de dizer "não" às birras do filho pela tesourinha do Mickey da vez, está na hora de ver bem por que isso ocorre.

Por trás dessa insegurança toda, acredito, existe a consciência mais ou menos clara de que não se está fazendo o bastante pelo filho. Os pais trabalham o dia inteiro e, em seu tempo livre (e todo mundo tem algum tempo livre), não se interessam pelos filhos. Deixam o filho na frente da televisão o dia inteiro, e depois, quando ele exige brinquedos e regalos, tenta comprar pelo suborno a relação que não foi construída pelo amor. A criança percebe isso, e é claro que isso a afeta. Culpar uma propaganda de TV, fenômeno insignificante da vida infantil, pelos transtornos infantis e pelo estresse familiar chega a ser ridículo. Arrisco até a dizer que o impulso de procurar culpados externos e impessoais, como os publicitários todo-poderosos e o sistema capitalista, seja parte do problema que os acomete, e não da solução.

E essa tendência acaba por distorcer a visão de mundo de muita gente. A campanha antipublicidade infantil depende da crença de que o mundo da produção, do consumo e da publicidade, ou seja, o mercado, é algo mau e sujo. Confunde-se, talvez intencionalmente, consumo com consumismo. Isso é óbvio nas citações acima.

Não há absolutamente nada de errado no consumo. Muito pelo contrário: é consumindo que o homem se mantém vivo. Todos nós nascemos consumindo: o leite materno, as roupas, o berço. Conforme o indivíduo cresce, vai se tornando capaz de produzir. É maravilhoso poder fazer parte dessa enorme rede voluntária de cooperação mútua: cada um contribui e recebe de volta de acordo com sua capacidade de satisfazer aos desejos dos demais.

O consumismo, por outro lado, é um fenômeno psicológico: é a crença irracional de que o próximo produto comprado trará — em geral pelo status que ele confere a seu possuidor — a felicidade, a realização e a paz que se procura. Isso não tem nada a ver com o livre mercado. Aliás, é notório que hoje em dia, vivendo sob estados fortemente intervencionistas, o consumismo seja um problema maior do que era, por exemplo, no século XIX, mesmo em países liberais como os EUA foram.

A entrada da criança no mundo do mercado (que inclui a responsabilidade pelos próprios atos, a capacidade de tomar alguns riscos, planejar os próprios atos, descobrir do que realmente gosta, pensar nos outros, manejar recursos escassos) deveria ser estimulada, e não adiada pela construção de uma bolha artificial que cria a impressão de que o universo surge do nada para suprir seus desejos e que, essa sim, torna-a alvo fácil do consumismo. Quem guia esse processo, preparando e auxiliando a criança em cada etapa, e evitando que ela faça escolhas desastrosas ou se depare com situações que excedam sua capacidade, são os pais.

O papel dos pais

Há um elemento nessa história toda que ainda não foi mencionado, mas que é central para resolver a questão: a criança não controla o dinheiro da família. Por mais inexperiente que seja, e exatamente por estar ainda em desenvolvimento, ela não tem a decisão final das compras. Esta sempre cabe aos pais. Mesmo supondo que a propaganda seja onipotente em controlar os desejos da criança, isso não seria desastroso; pois para que ela compre o brinquedo ou guloseima desejados, é preciso uma escolha consciente dos pais.

Os pais têm pleno direito de educar seus filhos conforme seus valores. Se um casal que leu este texto discorda radicalmente de tudo o que eu falei, ainda assim tem plena liberdade de criar seu filho longe do mundo da publicidade e do mercado, e de toda a cultura de massas. Há, aliás, uma solução simples a seu alcance: não ter televisão em casa. Ou tê-la apenas para assistir DVDs.

Claro que deixar o filho vendo TV o dia inteiro não é uma boa escolha, embora seja o que aconteça em muitas casas. Em lugares mais pobres ou nos condomínios de classe média, acredito que isso seja mitigado pela presença de irmãos e de outras crianças da vizinhança ou do prédio, que acabam brincando juntas, jogando bola, etc. É nos apartamentos e casas da classe média alta para cima, em que pais superprotetores isolam seus filhos do mundo externo mas também não lhes dão maior atenção, que mora o problema.

Taís Vinha, representante do ILC na audiência pública feita pelos deputados, diz que "da hora que acordam até o momento de dormir, as crianças são bombardeadas pela publicidade do consumo". Implícita nesta frase está a admissão, não tão abonadora, de que há pais largando seus filhos na frente de TV "da hora que acordam até o momento de dormir". Se os pais se omitem, não é proibir a propaganda e alterar a programação da TV que resolverá o problema.

As necessidades do trabalho por vezes fazem com que a criança fique longe dos pais por várias horas diariamente. Isso não significa que a televisão seja a única opção. É possível impor regras ou mesmo limitar o acesso dos filhos à TV. A criança se vira. O mundo, mesmo dentro de um apartamento, é um lugar a ser descoberto. Uns poucos brinquedos, papel para desenho, um quintalzinho, crianças vizinhas, uma área comum de prédio, uma rua menos movimentada, as tarefas domésticas feitas por algum adulto; tudo é campo aberto para a curiosidade infantil.

São os pais que informam e, idealmente, formam os filhos, dando critérios para que eles julguem, no melhor de suas habilidades, as ideias e mensagens que o mundo lhes apresenta. Isso exige, entre outras coisas, algumas limitações ao que a criança pode ou não fazer. Eu mesmo, que dos 3 aos 8 anos morei em apartamento e sem crianças vizinhas, cresci com regras sobre horário de TV até o colegial e, embora protestasse, reconheço que elas me fizeram aproveitar melhor o tempo livre. Sempre há opções. O pai que finge que não tem opção a não ser deixar o filho na frente da TV o dia todo e quer passar para toda a sociedade a sua responsabilidade de pai está fugindo de sua função. Não o deixemos, e lembremos que quem paga esse pato é o filho, cujas neuroses e o resultante consumismo não vêm de um anúncio de tesouras do Mickey, mas de perceber que seus pais não se interessam por ele.

Não estou com isso dizendo que quem defende o fim da publicidade infantil é mau pai. O que quis mostrar neste artigo é que essa nova lei terá efeitos nefastos, e que o que ela visa proibir não é mau e nem solucionará os problemas da infância, que têm raízes muito mais profundas.


Joel Pinheiro da Fonseca é mestrando em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta e escreve no blog Ad Hominem.