Mais de três horas de espera já haviam passado e a companhia aérea continuava a se desculpar com os passageiros e pedindo mais calma e mais paciência, pois o embarque se iniciaria em alguns minutos. A deixar a ira dos viajantes mais tormentosa lá estava ele, um metro e sessenta e dois de altura, cento e quarenta e dois quilos, cabelos ralos, meia-idade, olhos grandes e amendoados, barba por fazer, camisa um pouco surrada e com migalhas de pão adornando a barriga que faria inveja a qualquer grávida de quadrigêmeos perto da hora do parto falando pelos cotovelos. Pelos dois.


Seu nome ninguém sabia, mas de sua vida de taxista em Nova Iorque com aventuras fantasiosas e mirabolantes todos já haviam sido cientificados, tal era o tom grave de sua voz ao contar vantagem para outro paciente passageiro que tinha dom para monge budista por aguentar há mais de duas horas o sujeito que “monologava” ao seu lado. A conversa do parlapatão já descambava para o dia em que ele conheceu pessoalmente Kobe Bryant quando finalmente para o alívio de todos, e principalmente do monge budista, a companhia anuncia o embarque.


O taxista fanfarrão era brasileiro, carioca da gema, segundo ele, e estava indo ver sua mãe que morava no Leblon e aguardava ansiosamente sua chegada. Era filho único, tinha feito fortuna como taxista em Nova Iorque e exaltava o estilo americano de ser. Uma mochila nas costas escrito “I Love NY” aumentava ainda mais o já avantajado corpanzil que ia esbarrando em um e outro passageiro até a sala de embarque e posteriormente no apertado corredor que levava ao interior do avião. Suava feito tampa de marmita de pedreiro. O odor depois de tanto tempo já não era o dos mais agradáveis.


Seu percurso até o avião não fora o dos mais nobres, afinal derrubara duas crianças e uma velhinha de noventa e oito anos que viajava pela primeira vez . Era educado ao pedir licença, mas desastrado ao se movimentar, ao bater com a mochila em um virava-se para se desculpar e “paft” acertava outro passageiro. Ao todo, vinte e três vítimas do taxista americano e uma certeza: aquela viagem entraria nos anais das mais alucinantes na vida de Sinéia, a aeromoça que já estava contando os dias para se aposentar. Jurou que contaria em um livro as aventuras já presenciadas nas 948690348696876354693597583338497893467834 milhas de voo que tinha feito durante seus quase trinta anos de dedicação exclusiva à empresa. E aquela tinha tudo para ser inesquecível.Era o seu último dia.


Poltrona 16 A, indicava que o taxista sentaria na janela para o desespero dos seus vizinhos 16B e 16C. Mas assim que se sentou na poltrona gritou:
“- Sofro de claustrofobia, sofro de claustrofobia, não posso sentar aqui”. Apertou o alarme chamando a aeromoça, deu com o cotovelo na cabeça do senhor ao lado e uma leve mãozada na senhora que tentava se acomodar na fileira de poltronas. Depois daquele movimento feroz contou com a ajuda gentil e célere dos vizinhos da 16B e 16C que rapidamente tentaram tirar o taxista que àquela altura estava entalado na poltrona.


Sinéia, a aeromoça, (mais para “aerovelha” segundo ela mesma se autodenominava) aproximou-se pacientemente e falando em tom educado e em voz suave disse que arrumaria uma solução. Alguém que quisesse trocar de lugar com o referido senhor seria encontrado. Foi difícil. Quase uma hora e meia de tentativas frustradas e o piloto estava já pensando em chamar o pessoal do setor de negociações antisequestro da Polícia Federal até que uma alma caridosa cedeu seu lugar. Finalmente ele se mudara para a poltrona 24C, para o desespero dos vizinhos da 24B e 24A , a velhinha de noventa e oito que anos que jurou que seria a primeira e última vez que viajaria no invento veloz de Santos Dumont e a enfermeira que lhe acompanhava endossando as juras e promessas da senhora da melhor idade, depois da maldita e inapropriada troca.


Decolagem autorizada. Explicações do voo em português, inglês, francês, italiano, alemão e aramaico. Mas antes de partirem Sinéia leva o extensor do cinto para o taxista ficar devidamente seguro na diminuta poltrona 24C. Aquele era um voo especial. E seria.Era o último da aerolvelha que faria de tudo para ser perfeito.


Apenas o avião atingiu a velocidade de cruzeiro e um som alto e contínuo se fez ecoar da poltrona 24C. Logo em seguida o cheiro de enxofre, misturado à fossa, bafo de banguelo e com essência de fezes de dinossauro foi percebido até na cabine do piloto que pensou tratar de um atentado com bombas de gás, mas ele, o taxista, acusou logo a responsabilidade pelo acontecimento e também disse a todos que sofria de diverticulite e de logo se explicava; “_ Lembram-se do Tancredo? Pois é, não posso segurar senão...” E assim que acabou de falar, outro mais agudo e contínuo foi sentido.

A senhora de noventa e oito anos desmaiou. A enfermeira tentou acudi-la mas sofreu mais uma rajada flatulenta do taxista americano que colocou toda a culpa naquela latinha de feijoada que ele jurava ter comido só a metade. Pedidos de desculpas se seguiram mais 45 vezes e o piloto já pensava em abortar a viagem e voltar para o aeroporto de origem, o que lhe foi negado pela torre de comunicação determinando que ele continuasse viagem e se virasse que o avião tinha que estar no Rio de Janeiro de qualquer jeito. Afinal já estavam com mais de 5 horas de atraso.


Os passageiros entraram em pânico e pensaram em trancar o senhor no banheiro, uns queriam atirá-lo para fora do avião. Um senhor pensou em matá-lo, mas foi contido pela senhora ao lado dizendo: “Padre, ele também é filho de Deus!”.


De repente uma solução. Sinéia a "aerovelha" acionou para que as máscaras de oxigênio caíssem em cada assento para o alívio dos passageiros e a diminuição da tensão que se espalhava descontroladamente. Os tripulantes já haviam perdido o senso de civilidade e procuravam cada um por si tentar resolver a “diverticulite” maldita na porrada.


Pouso autorizado. Avião no chão seguido de aplausos para o piloto e para Sinéia. Alegria geral e efusiva maior do que ganhar da Argentina em final de Copa do Mundo e uma única certeza: aquele voo teria entrado para a história da aviação aérea brasileira.