A vida não tinha sido muito fácil até ali. Nascera de mais um descuido de Zefinha e os insistentes “chumbregos” de Tião. Seu pai era realmente insaciável nas coisas do amor. Zefinha, sua mãe, embora calada, não negava guarida para os braços do amado e aceitava todo tipo de safadeza entre as quatro paredes do minúsculo ninho de amor para não perder o marido para as “mulheres da vida”, como ela mesma confidenciava ao padre Zezo da paróquia de Nossa Senhora do Perpétuo do Socorro.
O jeito foi trabalhar pesado na roça para ajudar a gigantesca família de doze irmãos, três cunhados desempregados, treze sobrinhos e alguns agregados que sempre estavam “de passagem” por coincidência da sagrada hora do almoço quando todos oravam e agradeciam pela quase farta ceia diária.
O roçado não era seu forte, gostava mesmo de literatura. Era considerado muito delicado para a lida diária, mas opção outra não havia pelas bandas daquele sertão tórrido e árido de emprego e oportunidades. Das mãos calejadas pelo manejo da enxada brotavam letras arredondas ao copiar romances de Machado de Assis e Graciliano Ramos à luz do candeeiro em seu cômodo dividido entre tantas almas viventes naquele seio familiar. O barulho dos roncos e o odor da flatulência de seus convivas animavam a noitada do escritor.
Estudava à noite na única escola pública da região para sair do roçado e ser “dotô”, como seu pai mesmo profetizava. Nome pomposo de batismo já possuía: “Saulo Otoniel Tales Augustus”, mas era mais conhecido como Fitilho em razão do floreado com as palavras e a delicadeza com que manuseava o rastelo e o enxadeco na labuta do plantio de macaxeira no roçado na família.
A vida real lhe parecia sem muita novidade até que um dia uma grande obra ali por perto se iniciara. Obra com cara de geração de emprego e renda para o povo daquele tórrido e árido sertão. Com placa, banda de pífano, discurso acalorado e inflamado do prefeito Neca do Quinca Mole, e com toda pompa e circunstância foi feita a grande festa de recepção do progresso.
A presença do governador deu ares de coisa importante. O anúncio do grande feito se espalhou como réstia de esperança ao sertanejo daquele lugar. Até Padre Zezo foi chamado para benzer a estupenda construção. E com a benção de Deus não tinha como ser coisa do cabrunco. Seria a redenção da cidade de Sucupiranha do Canindé, 5689456345683849689 quilômetros luz de distância da “capitá”.
Na placa, que poucos conseguiam ler, Fitilho revelou o mistério do investimento. Após calcular e juntar a porção de números com o custo de 380.000.000,00 leu para a plateia ávida de curiosidade, sede e fome o nome da construção: PRESÍDIO DE SEGURANÇA MÁXIMA CACHOEIRA DO NORTE. Pronto. A pacata Sucupiranha do Canindé receberia os presos de segurança máxima de todo o estado. Quinhentos ao todo.
E com a benção de Padre Zezo o negócio de tanto dinheiro não tinha como falhar, mesmo com as almas possuídas pelo Tinhoso que haveriam de colocar ali dentro. Qualquer coisa padre Zezo dava um jeito, afinal ele benzia de tudo e santifica tudo. Até a mulher do barbeiro Bigode de Toco tinha parado de chumbregar com o padeiro depois das “bença” do padre Zezo, como não haveria de santificar aqueles Tinhoso da perversidade, pensava o povo sucupiranhense. Padre Zezo era santo. E pronto!
Após a instalação do presídio, com a remoção dos presos mais perigosos do estado, entre eles o temido BRINQUEDO DO CÃO e o famoso CACHOEIRA CHUPA CABRA, foi aberto concurso público para agente penitenciário. Fitilho por certo viu sua chance de sair do roçado e se inscreveu. Aprovação certa logo iniciou a carreira de agente público para orgulho da cidade e de seus pais que em lágrimas pensaram que o filho agora era uma autoridade da segurança do estado. Realmente o enxadeco e o rastelo dariam lugar para outros instrumentos que colocariam mais comida e fartura na mesa de tantas bocas e agregados.
Fitilho foi colocado no setor de “inteligência” do presídio, uma espécie de central de bisbilhotagem sobre a vida dos detentos, seus familiares e raros visitantes, afinal chegar ou sair de Sucupiranha do Canindé não era tarefa das mais fáceis.
Nada que entrasse ou saísse do presídio através de códigos, mensagens, bilhetes, cartas, telegramas, telefonemas e que envolvessem os detentos e seus afazeres passaria sem que houvesse a ciência do agente Fitilho.
Esta missão permitiu que Fitilho conhecesse a vida íntima de cada cidadão ali encarcerado. Segredos e intimidades. Saber de fatos da vida de cada um aguçou a veia literária do agente que ao invés de copiar os enredos de seus autores preferidos, começou a escrever um diário do cárcere nas noites de insônia sob a luz do candeeiro e o barulho dos roncos e constantes zunidos flatulentos dos muitos conviventes de seu cômodo.
As descobertas eram intrigantes e assustadoras. CACHOEIRA CHUPA CABRA era protegido de um famoso deputado estadual que posava de honesto nos pronunciamentos e discursos, mas que na verdade recebia parte do dinheiro dos assaltos, assassinatos e relações do amigo, tinha ligações com um juiz federal, era amante da esposa do governador e era traído também pelo seu braço direito, TONHO CICATRIZ. BRINQUEDO DO CÃO, embora temido assassino e sanguinário no trato com as vítimas era um delicado homossexual e gostava de posições bizarras na hora do sexo, gostava também de colecionar receitas de bolos e tinha como sonho abrir uma confeitaria. Seu namorado, MARCINHO VP, que se passava como primo nas poucas visitas programadas que realizava, mandava cartas com declarações de amor que fariam inveja a qualquer moça da cidade que sonhava com o príncipe encantado. Era também muito ciumento com o BRINQUEDO DO CÃO, tratando-o como “Pimpolho do Amor”.
Nem Padre Zezo saberia de tantos detalhes da vida íntima das pessoas, pensou. Tinha farto material para produção de muitas obras literárias. Seu diário do cárcere crescia cada dia mais. Passou a fazer horas extras, plantões e ficou obcecado na vida íntima e nos segredos dos detentos.
Por vezes se via rindo sozinho ao imaginar que aqueles perigosos bandidos eram mais delicados do que ele com o rastelo e o enxadeco e que muitos dos “homens de bem” que até então respeitara eram verdadeiros bandidos escondidos em cargos e funções nobres. Não escondia sua admiração pelas descobertas e registrava tudo, sem contudo esconder ou escamotear os nomes dos personagens.
No entanto, em mais um dia de visita de MARCINHO VP Fitilho acabou falando demais. Na tentativa de puxar uma prosa e saber um pouco mais sobre o primo de BRINQUEDO DO CÃO (ou seria Pimpolho do Amor?), acabou perguntando sobre uma receita de bolo e fustigou a imaginação do amante bandido de que algo estaria acontecendo. O ciúme e o medo puderam ser vistos nos olhos do visitante. Fitilho percebeu que tinha cometido um grande pecado naquele momento. Tentou desconversar, mas já havia acendido a chama da desconfiança. MARCINHO VP balbuciou alguma resposta evasiva e se retirou do local.
Na noite seguinte Fitilho apareceu morto com muitos tiros e com o corpo mutilado. Tivera a língua arrancada e os ouvidos queimados. A pacata cidade de Sucupiranha do Canindé, 5689456345683849689 quilômetros luz de distância da “capitá”, tinha notícia do seu primeiro crime de sangue. A vítima, o delicado cidadão do enxadeco, a autoridade pública do lugar, o homem das letras arredondadas, orgulho de todos havia sido assassinada.
O velório foi comovente. Discursos inflamados do prefeito e das autoridades locais prometiam rigor na apuração do crime bárbaro e atroz que apavorou a todos. O motivo para tanta barbárie e violência até então desconhecidos seriam descobertos, garantiu o diretor da penitenciária.
Tião, analfabeto nas letras dos homens, beija calorosamente a face de seu filho em despedida comovente. Como última homenagem, sob a bênção do Padre Zezo, ao fechar o caixão, coloca sob suas mãos aquilo que Fitilho mais apreciava fazer nas noites de folga de seus dias de labor: seu diário.