Era o pretexto do Lindinalvo: Semana Santa só com peixe dele e do “cumpadi”. E lá se ai, todo fagueiro e faceiro, para as bandas do Pilar, pescar de rede e de canoa, noite adentro dia afora, fizesse chuva ou sol, na ponta da mãe lagoa Manguaba.
Tudo bem, o “cumpadi” só se conhecia de nome. Mas era coisa da tenra infância do Lindinalvo, haveria de ser gente de bem, gente “fixe”, baluarte da moralidade.
Na semana de prévia do sacrifício Sacrossanto e Cristão, deixava tudo e ia para sua terra natal. Sim, porque o “cumpadi” o aguardava, e ele não podia “faiar” não, de nenhum modo nem de nenhuma maneira. Era tradição desde “minino”. O caniço ficava vadio só esperando e o arrasto era certeiro. A repartição que o esperasse, assim como a esposa, os filhos, o lar, e a sogra.
Por conta própria tirava licença de uma semana, afastava-se do trabalho e da vida, era só ação em busca da carne sem sangue e desprovida do ícone do sacrifício do Senhor Jesus. E o “cumpadi” era seu companheiro naquela jornada espiritual e, num futuro próximo, comestível em nome da Fé e do perdão.
Jovelina, a mulher, era só espera pelo marido pescador e temente de Deus Santo Pai. Reclamar de que? Afinal, cachaçada não havia de ser, muito menos libertinagem ou coisa de gente despudorada das “venta”. Sim, seu homem, provedor e crente, naquela época fugia de carne vermelha que nem Judas fugia do malho. E o pão pescado com a própria mão era o melhor e mais puro de comer que havia.
Naquele ano não foi diferente. Todo mundo já esperava o comportamento e o retiro inegociável. Lindinalvo, sisudo, respeitador e rezador papa hóstia, homenzarrão de mais de metro e noventa, pança proeminente e bigodes generosos a la Leôncio do Pica- Pau, domingo cedinho ia de encontro com a Besta, o carro, rumo à BR 316 e à pescaria de semana com o “cumpadi”.
E assim passaram-se os dias até a quarta-feira Santa, dia antes da quinta, data em que Lindinalvo voltava, samburá “esborrante” e abarrotado de pescado de lagoa, tudo com a isca dele e do “cumpadi”. Montanhas de coco já eram estocadas por Jovelina, cuja munheca inchada já denunciava o excesso do rala-rala do fruto no marisco pregado em prancha de pau e ajeitado por entre as pernas da mulher.
Haveria de haver peixada a rodo, farta que nem lavagem de porco, para encher bucho da esposa e da prole, e também da parentada. Inclusive para engasgar propositalmente a sogra com espinhaço na goela, só para Lindinalvo ter o prazer de ver a surucucu comer meio mundo de miolo de pão e, sem efeito, ser malhada quem nem o traidor de Jesus “prumodeguspi” a tinhosa à força e na base de mãozada violenta nas costelas.
Mas naquela quarta, daria tempo de inovar. Por que não conhecer o “cumpadi” pensou a esposa? Certamente agradecer pela mesa farta no ápice do calvário do Salvador. Ser de crença deveria de ser o amigão do marido. Aproveitava e conheceria o afilhado e a família... Quem sabe até “cumadi”, se é que existia. Com este espírito pegou a Besta a Jovelina, inocente e sem malícia nenhuma.
Tabuleiro, Satuba, entrada de Santa Luzia, churrascaria Lasquei-T, subida rumo à terra de Artur Ramos. A descida do meio de transporte deu-se em plena praça da matriz.
E foi sob os olhos da Nossa Senhora que a esposa viu a cena.
Lindinalvo com o “bico molhado”, camisa e calção, taco de sinuca por entre os dedos grossos, som do “ai seu te pego” no alto volume, dava uma tacada e passava a mão no “cumpadi”: uma moreninha de 19 aninhos, cintura de pilão, peitinhos de furar, cheirosa de alfazema após a limpeza diária do bagre santo de cada dia pescado na imensidão lagunar, pronto para sair em sacos e ser servido com estrago e sem economia em prato fiel de mesa de esposa iludida.
Não fez barraco, nem deu alteração a mulher.
Mas a partir daquela Semana Santa acabou-se a pescaria anual do marido.
Sexta da Paixão passou a ser só com sardinha Coqueiro, pitiguirra ou, quando muito, uma merluzinha translúcida made in Cesta de Alimentos.
O “cumpadi” morreu, foi a notícia que Lindinalvo, ao lado da carrancuda e vigilante Jovelina, foi forçado a dar para a filharada e para sogra.
Carne vermelha com calcinha vermelha da cor do pecado que nem a que a moreninha vendedora de bagre no atacado ostentava continuou a ser condenável tentação.
E se o marido reincidisse, o seu destino seria fazer trajeto inspirado na Via Crucis, com coroa de espinho a ornamentar outra cabeça, prometia Jovelina, fera ferida, vingativa e comedora de bagre fruto de premeditado e fanfarrão adultério.
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