Todos os dias, o mesmo ritual.
Acordava cedo, tomava café frio dormido, vestia-se como nos anos dourados.
Abria o comércio, dava bom dia, pagava as contas.
Admirava a fotografia da esposa.
Fechava a loja de aviamentos antes das cinco, tivesse ou não clientela.
Passos pequenos e precisos para ainda contar com luz solar. Caminhando mesmo, Centro de Maceió adentro.
Ia dar boa noite a Glorinha.
Assíduo, pontual. Infalível.
Mantinha-se romântico o Francelino. Levava, nalguns dias, ramalhete multicolorido de flores, das quais a musa mais gostava e fazia lacrimejar.
Tinha também os bombons, os alfajores, então... ela amava. Aquela viagem de navio para Buenos Aires, o som de Gardel em Abasto. Tudo era lembrança para o casal.
Havia datas em que presente não levava, a não ser sua paixão intocável. Mas estava sempre, diuturnamente, ávido pela conversa macia e gostosa da parceira de uma vida.
Os assuntos eram muitos, dos mais estarrecedores aos mais ternos. Da carestia à política. Da vida alheia ao conflito externo.
Do amor que sempre sobrara, dos filhos que nunca tiveram.
Como eram inesquecíveis todas aquelas tardes! Em verdade, eram elas que o mantinham vivo em décadas de solidão.
Todos já sabiam do hábito, que ao longo do tempo tornou-se inquestionável.
Às três já começava a se impacientar. Gestos rápidos entre agulhas, linhas, dedais, fitilhos, botões, viéses e zíperes. A clientela já sabia o motivo do atendimento expresso que o logista velhote ofertava na segunda metade do vespertino.
Uns, os mais chegados e mais longevos, até perguntavam pela mulher. Resposta era sempre etérea, imprecisa, mas o contentamento do vendedor amigo de anos com o questionamento alheio compensava a ineficácia e a impossibilidade concreta da demanda oral.
Houve momentos de apreensão, quando o primo Licurgo, médico renomado, preocupou-se com sua obsessão desmesurada, indicando-lhe viver dali para a frente nova vida.
Conselho em vão.
Houve dias de encontrar Glorinha mais reticente, como que momentaneamente infeliz, macambúzia, fria.
Houve dias de até discutirem sobre motivos fúteis.
Mas, afinal, qual casal não os têm.
Rememoravam as matinês do Cine Rex, os carnavais da Rua do Comércio, os areiais da Ponta Verde e da Jatiúca ainda sítios, ainda desterros.
Passaram-se aniversários dele, aniversários dela, aniversários dos dois. Ele sempre lá, cotidianamente presente.
O do primeiro beijo era comemorado na visita do dia todos os meses, mesmo que por vezes em silêncio contemplativo.
O do casamento, sempre, religiosamente tinha buquê branco, análogo ao jogado pela mulher e agarrado pela prima Gertrudes há 57 anos.
Sempre lembrava, ou lembravam, disso.
No dia do velório dela, inclusive, a prima Gertudres era uma das que mais chorava. Lembrara-se justamente do casamento e do buquê, para ela amuleto de seu casamento com o França Pinto durar até hoje em sólida união.
Mesmo passadas mais de duas décadas da morte de Glorinha Francelino pode ser visto toda tarde, no mausoléu de número 33 A, quadra 5, do Cemitério da Piedade. Senta-se sobre o túmulo, dialoga com lápide.
Lá visita a esposa, seu amor de uma vida.
Mesmo e para sempre, mesmo que após seu passamento.
Estou no @weltonroberto