Surpreendeu a todos o modo de morte, diga-se, automatada da Lucinda.

Três dosagens de milioitenta, certeiras, drásticas e infalíveis.

Não deixou nem carta, nem testemunho, nem relato de dissabores a defunta, impossibilitando parentada, “chegados”, agregados e curiosos ao tomarem de ciência das motivações de seu infortúnio.

Sabia-se que era casada, mãe, “do lar”, a cuidar dos meninos, fazer a janta, tricotar crochê.

Também era de conhecimento da vila inteira os adultérios do Joca, o marido peixeiro e jogador inveterado de baralho, os perrengues domésticos de toda sorte e valia, o passado de privação compartilhada quando da vivência em casa de pai e mãe.

Entretanto, o sorriso nunca sonegado pela Lucinda, agora só alma e saudade, fazia preservar o mistério.

Qual o porquê?

Muito se especulou.

No velório, o questionamento pairava no ar, tão dissoluto quanto chama de vela, a impregnar com seu odor o ambiente por completo.

- Descobrira a rapariga da Vila Belém, mateúda do marido.

- Cansara-se do lavado de roupa de ganho em tempo de fome em alta e de urgência em botar de comer para os filhos.

- Vingara-se, com sua própria vida e sangue, das durezas do cotidiano, sempre, para ela, vil e carrasco.

Muito maldisse amigas, comadres e futriqueiras.

Mas, se tudo isso a afligia, por que jamais expeliu sinal de alerta, grito de reclamo, exclamação de contundência.

Por que, ao contrário, sempre sorria?

O marido, incrédulo, mirava o ataúde. Os meninos, órfãos com a solidão indescritível da perda de mãe, já não contavam com mais forças para lágrimas, nem lamentação, sendo só tristeza e pesar, dos mais profundo tipo e extraído do mais recôndito da existência.

A mãe da morta, inconsolável.

O pai da morta, suspenso do chão.

Irmãos e irmãs entre revoltosos e resignados.

Lucinda finada, toda de mortalha roxa-púrpura, com rosto angelical parecia dormir por debaixo do véu, com terço na mão alva de dedos entrelaçados sobre o peito.

Parecia feliz no caixão, como que com gargalhada represada, a explodir.

- Não havia caso de suicída na família. O tio Setembrino, há anos lá no sítio, teve um filho que por cego de nascença se enforcou aos 23 de idade.

- Era covardia. Sua alma iria penar. Se judia fosse, seria enxotada para canto escondido e miserável do cemitério.

- Havia de Jesus, nosso Pai e Senhor, rogar-lhe uma boa morte, com auxílio do Padim PadiCiço.

Muito injuriou carolas, infames e santeiras.

Mas o certo era que as causas do gesto único e fatal seriam, para sempre, sepultos junto ao corpo ora em câmara ardente. Para o infinito silêncio da cova seria levado, carregando junto a dúvida derradeira e perene, agora insubstituível.

Aliás, duas: qual a razão da morte e qual a razão da sutil alegria.

- Ela sempre me amou. Vivia feliz.

- Minha filhinha...

- Mãe!

Muito penou esposo, mãe-pai e meninos.

Na hora pior entre as mais dilacerantes, silêncio respeitoso. Fechar a urna, última mirada no cadáver, desespero em nota respeitosa. Caixão lacrado em câmera lenta.

Oração, unções, cânticos.

Choro.

Lucinda, a suicida, despedia-se do mundo físico dos outros levando consigo seu mistério para a eternidade jamais revelado.

Ainda mais com seu semblante sereno, antitética e desafiadoramente prazenteiro na hora do último minuto em vidência.

Na missa de sétimo dia, a perplexidade do inesperado ainda se sentia.

E no santinho, a fotografia sorridente de Lucinda causava assombro e inquietação.
 

 

Sigam-me no @weltonroberto