Neste tempo de fim de ano e festas em geral, ela se escondia.

Nada comemorava.

Afinal, festejar o quê?

Bem mais do que 60 na carteira de identidade e “chegando os 50” na fala fantasiosa para os demais, Matilde vivia só.

Era da casa, para a repartição, para o “bailinho” de sexta quando havia, para a missa de domingo. E ponto final.

Menos em dezembro, quando se recolhia ao seu mais profundo caritó. Nem Papai Noel, nem o Menino Jesus a abstraíam do sentimento de vazio.

Ainda tentava se engraçar com homens, já tivera mais casos esporádicos, amores passageiros. Chegou a noivar uma vez e quase foi embora do país com um gringo esquisito que conhecera em Salvador.

Mas seu destino era a solidão. Isso porque ninguém, de verdade, a amara nesta vida inteira de rejeição e suplício amoroso.

Teve o Carlos Teles de Moura, gerente do banco, que depois se revelou casado e pai de gêmeos. Teve o Miguel Porciúncula Aragão, de bigodes grossos e másculos, que preferiu ficar com a Maria de Fátima filha do seu Miguelino Torres de Abreu, dono do curtume. Também teve o Asdrúbal Seixas da Silva, paquera do bairro, que morreu afogado num piquenique no rio Poxim.

E todo Natal e Ano Novo vivia períodos de angústia avolumada por falta de um amor.

Sobrava-lhe a desilusão. Em especial na seara afetiva do homem nunca existente, do companheiro para aquela viagem louca ao Pantanal ou à China que sempre planejara mais nunca executara, para a compra compartilhada daquela casa ou para o aperreio daquela prestação, para encobri-la em noite de frio... para a briga seguida de reconciliação.

Que mal fizera? Era ela a se questionar, sem resposta obter.

Naquele ano não estava disposta a fazer diferente. Dezembro chegara e o pedido de férias-clausura estava próximo, já na pré-aposentadoria aguardada com alegria sinistra.

Para os outros, dizia fazer turismo de aventura e emoção, com noites de sorrisos e taças de vinho em companhias viris das mais divertidas e variadas, todos na flor da melhor idade, curtindo a experiência do bem viver.

Mas só ela sabia que entre o 1º de dezembro do ano que se findava ao 1º de janeiro do ano nascedouro seria o mais absoluto breu. Trancada no apartamento, chorava suas mágoas e lástimas, e felizmente covarde para o suicídio preferia ver passar as horas e os dias em total desalento, até a aurora do primeiro mês do ano nascer.

Até que um dia antes do recesso laboral, recebeu um estranho pacote em sua mesa petrificada no departamento de fiscalização e tributos da Secretaria. Uma caixa antiga, embrulhada em jornal muito velho, coberta por bolor, amarelada pelo tempo, e sem identificação de quem a enviava.

Estranho. Nada encomendara do passado e inexistia, em seu caso, remetente afetuoso capaz de lhe enviar mimo ou presente.

Certamente, não deveria ser para ela.

Desconfiada, abriu o recipiente.

Tomou um choque ao ver o que tinha dentro.

Eram várias, inúmeras, quase incontáveis fotografias, sempre em grupo, mas com Matilde focada em destaque.

Anos 60, tempos de faculdade e festa no Clube Fênix, na Pajuçara, nas casas de colegas no Farol e no Bebedouro.

Ela se viu 40 anos mais jovem.

Vestidos e cabelo ao jeito de Cely Campelo, em meio à turma do curso de direito da hoje Ufal, dos formandos de 1965 e que se conheceram em 1961, ela parecia feliz.

Dizia uma curtíssima missiva, pregada à tampa da caixeta:

– Nosso pai nunca te esqueceu.

Quem seria o acadêmico apaixonado e oculto, o fotógrafo anônimo e imperceptível, o amante jamais declarado da faculdade ou das baladas sessentistas, obcecado a vida inteira por sua imagem?

Da sua turma em específico já se registravam mortos, mas as saídas eram sempre múltiplas, coletivas, em grupos heterogêneos.

Impossível identificar o detentor da paixão platônica, materializada pela fotografia

Mas àquela altura do campeonato de uma vida desamorosa, aquilo era o que menos importava.

Enfim, teria um Natal e um Fim de Ano como, há décadas, nunca teve.

Foi para a casa e decorou paredes, árvores natalinas e porta-retratos com sua imagem clicada pelo amante jamais declarado.

E naquele ano, enfim, faria ceia para dois.

Na outra ponta da mesa, na cadeira em que ninguém se aboletara, sentariam-se o Osvaldo Pontes de Lemos, o Juvenal Ovidio de França, o Pedro de Oliveira Salgado, o José Maria Neves Sobrinho, o Aristides de Melo Silva Paiva, o Julio Quintella de Menezes, o Valfrido dos Reis, o Severino da Costa Chaves de Mendonça, o Florentino dos Santos Castro, o Mario Junqueira de Lira, o Antenor Dorea Lins, o Francisco Julião da Silva Guia e o Antonio de Mendonça Veridiano Filho, entre muitos outros vivos em suas reminiscências.

Todos compareceriam em vida e em memória, um a um, para seu jantar natalino, reavivados que foram pelos fotogramas.

Todos vindos diretamente das festas, das bancas, dos bailes, das matinês e dos desencontros do passado.

Todos, amantes em potencial, a rememorar o sonho possível.

Sonho reanimado pela imagem do ontem e pela imagem do sempre.

Em busca do espírito natalino de renovação.

 

 

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