Amigos, deixo para reflexão mais um ótimo texto de Rodrigo Leite. Discordamos muitas vezes, mas, nesse caso, como em outros, estou de acordo.

Leiam e comentem.

QUANDO SE ABUSA DO JARGÃO: “ISSO PERTENCE À MINHA CULTURA”

Recentemente a Justiça Federal de São Paulo concedeu a estudante adventista o direito de faltar às aulas nas sextas-feiras. Decisão Equivocada. Apesar de robusta legislação vetar a hipótese de dispensa de freqüência por motivos religiosos, proponho uma reflexão que não seja legalista, mas teórica. Aproveitando a boa vontade de Adrualdo Catão, misturo o caso ora famoso com uma passagem que vivi nos tempos que dava aula.

Era professor numa faculdade e dava aula sexta-feira à noite. O aluno chega até mim e declara sua fé (era Adventista do Sétimo Dia). Não poderia freqüentar minhas aulas naquele horário e me pergunta educadamente, como bom aluno que era, se eu poderia dispensá-lo daquela obrigação. Explico que infelizmente não. Naquele momento o garoto me fulminou um olhar que jamais esquecerei e perguntou: É justo que eu seja punido em razão de minha fé?

A cena foi um remake de Cristo questionando Saulo de Tarso no caminho de Damasco com o célebre ‘Saulo, Saulo por que me persegues?’ Naquela paródia, o estudante era o Cristo e o professor, o Tribuno. Diferentemente de Atos 26:14, ninguém caiu do cavalo convertido ou mudou de nome. Respondi de um modo que lhe pareceu cínico: Não vou lhe perseguir e nem vou abonar suas faltas...

Havia no caso do estudante (do meu estudante e da adventista famosa) algumas confusões: 1) Ele não tomou falta por ser adventista, ele tomou falta pelo único e ululante motivo de não estar na sala. 2) Além das médias necessárias obtidas em avaliações, é pressuposto aos cursos superiores e presenciais, pasmem, um percentual mínimo de presença nas aulas.

Só um dedinho de teoria democrática:

Nas democracias constitucionais os indivíduos possuem dois tipos de compromissos: compromissos substantivos e compromissos procedimentais. Os compromissos substantivos dizem respeito aquilo que o indivíduo compreende ser uma vida boa, aquilo que ele vai fazer com a liberdade a qual tem direito. A liberdade de credo faz parte desses compromissos substantivos. Não cabe ao Estado dizer ao indivíduo qual deve ser seu caminho na busca da felicidade. Outro tipo de compromisso são os compromissos procedimentais. Nisso o Estado deve se meter. Os compromissos procedimentais dizem respeito ao modo pelo qual o Estado arbitra as buscas individuais pelos ideais de vida boa. Cabe ao Estado dar um tratamento justo; e isso aqui significa que os indivíduos não sejam tratados com perseguições ou favorecimentos. É a igualdade procedimental.

No caso dos adventistas não há nenhum cerceamento de direito haja vista que: 1) eles podem professar sua fé livremente, e 2)podem freqüentar, desde que queiram, as aulas que estão sendo ofertadas 3) podem se matricular na disciplina noutro horário e 4) podem fazer um curso não-presencial.

O que não é legítimo é apresentar um compromisso genuinamente substantivo como argumento isolado de quebra de um compromisso procedimental. Tradução: abonar aquelas faltas implicaria na quebra do justo tratamento aos estudantes que não são adventistas e estão obrigados a cumprir o dever da freqüência em sala.
Sempre há, nesses casos, quem invoque o Princípio da Isonomia. A parte ruim é que não falta quem aleije esse princípio. Diriam: “Se o Princípio da Isonomia orienta tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente na proporção de suas desigualdades, é razoável conceder aos desiguais adventistas ‘direitos especiais’.”

Sofisma! Sofisma Reloaded! Sofisma Revolutions ungido no sangue de Protágoras! Um compromisso substantivo (moral) não implica nenhuma desigualdade procedimental (direito). Adventistas não são desiguais do ponto de vista da isonomia. Pertencem à mesma categoria que os outros estudantes, logo igualmente tratáveis. E nesse arranjo institucional, se o objetivo é passar de ano, conquistar o diploma, não tem aluno católico, protestante, branco, preto, gospel ou roqueiro... Têm só duas categorias: os que têm freqüência mínima e boas notas serão aprovados. Os que forem reprovados por não comparecimento na sexta-feira à noite por motivos religiosos terão suas faltas abonadas no dia do Juízo Final.

Rodrigo Leite é Cientista Político

@_RodrigoLeite_