Por ocasião da tal semana da consciência negra, publico um ótimo texto de Demétiro Magnoli. Num mar de hipocrisia e falsidades históricas, é importante desmascarar o discurso racialista e seus corolários. Entre eles, a desvalorização histórica da abolição da escravatura e a mitologia criada em torno de Zumbi dos Palmares.

Além disso, importante alertar para os perigos de uma polarização baseada na cor da pele. Esse texto esclarece muito. Vale a leitura.

Distraídos, mataremos

Por Demétrio Magnoli

A senadora Roseana Sarney (PMDB-MA) e o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), aparentemente tão distantes no espectro ideológico, estabeleceram curiosa parceria em torno de um projeto de lei de autoria da primeira, que fixa três datas comemorativas para “os segmentos étnicos nacionais”: o Dia do Índio, em homenagem aos “povos autóctones”, no 19 de abril, o Dia do Descobrimento, 22 de abril, dedicado à chegada do “branco europeu”, e o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, alusivo à morte de Zumbi e consagrado a “celebrar o negro”. A contribuição de Alencar, por meio de um substitutivo, não muda a natureza do projeto, mas lhe confere tonalidades “combativas”, rebatizando o 19 de abril como Dia de Luta dos Povos Indígenas e tornando o 20 de novembro feriado nacional.

As nações, como explicaram Terence Ranger e Eric Hobsbawm, são fábricas de “invenção das tradições”. A narrativa do “encontro das três raças”, construída ao longo de cem anos, entre a Independência e o início do século XX, configura um mito imaturo, inacabado, aberto à interpretação do futuro. Inicialmente, ele foi preenchido pela proposição da harmonia. Depois, a crítica histórica evidenciou a dor e a opressão como elementos nucleares do sistema escravista, bem como o lento genocídio fragmentário que dizimou os povos indígenas. Mas nada disso abalou os alicerces do conceito anti-racista de mestiçagem que, desde Gilberto Freyre, propiciou à nação uma utopia coesiva e positiva.

À primeira vista, o projeto da dupla Sarney-Alencar se inscreve na linha de continuidade do mito original. Contudo, trata-se de uma falsa impressão: a instituição de três “datas étnicas” separadas e conectadas a cores da pele é uma viagem no tempo, até antes de Freyre e do conceito de mestiçagem. Não há nada de fortuito na circunstância de que essa viagem ao passado seja proposta num presente vincado pelo programa, que também está num projeto de lei, de divisão legal dos cidadãos brasileiros nos estamentos “branco” e “negro”. No fim das contas, a herdeira da oligarquia dirigente do Maranhão e o radical da moda em Ipanema se associaram para, reinterpretando o sentido do 22 de abril, instituir um “Dia do Branco”, que funcionaria como complemento racista indispensável do “Dia do Negro”.

Zumbi é uma figura lendária, mais que um personagem histórico. Na sua luta heróica e desesperada, ele tentou criar um mundo à parte, fora do espaço mercantil-escravista da América Portuguesa, num tempo anterior à existência do Brasil e num cenário que excluía a hipótese da mudança da sociedade. O Espártaco dos Palmares devia ser lembrado como um condutor da tocha da liberdade humana, não como o representante de uma raça. Mas o 20 de novembro, por iniciativa do Movimento Negro Unificado, foi definido como uma celebração excludente: segundo a lógica macabra dos “segmentos étnicos”, a “consciência negra” não tem lugar no corpo branco. Agora, a união dos legisladores da “direita” e da “esquerda” pretende inventar uma “consciência branca”, algo que tem o cheiro indisfarçável das fogueiras da Ku Klux Klan.

Há uma lógica férrea no pensamento racial, que funciona como alicerce subterrâneo do projeto de lei da dupla dinâmica. A lógica pode ser expressa assim: uma raça só ganha existência no interior do grande painel das raças – isto é, o “negro” precisa do “branco” para ser negro, e vice-versa. A “consciência negra”, quando incrustada na letra da lei, conduz em algum momento à manufatura legal de uma “consciência branca”. Tanto quanto as camisetas com a inscrição “100% negro”, usadas por militantes iracundos da idéia de raça, tendem a provocar o surgimento de opostos complementares nos quais algum vagabundo escreverá “100% branco”.

Os defensores do chamado Estatuto da Igualdade Racial, o projeto de lei que voltou a tramitar na Câmara e que divide oficialmente os brasileiros em “brancos” e “negros”, utilizam o argumento sofístico segundo o qual apenas fixam em lei aquilo que é uma realidade social. Contudo, mesmo se o racismo fosse um comportamento social dominante no país, o que está longe da verdade, por que se deveria converter o crime em norma legal?

Toda a história contemporânea, com seu cortejo de guerras étnicas, é uma longa demonstração de que o Estado tem o poder de fabricar identidades coletivas. A distribuição de privilégios segundo a cor da pele ou a ancestralidade suposta, nos moldes do Estatuto Racial, representa um meio eficiente de fabricação de identidades étnicas. A instituição de “feriados étnicos” aponta na mesma direção, mas, obviamente, tem efeitos mais sutis e muito menos deletérios. Talvez não seja justo dizer que Roseana Sarney e Chico Alencar pretendam estimular as pessoas a construir suas identidades em torno da cor da pele. Provavelmente, eles querem apenas atender à vontade de grupos bem organizados e esperam retribuições eleitorais. O diabo é que, distraídos, mataremos.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.

Publicado em O Globo, no dia 15/11/2007.