Brasília – Só quem já leu o livro “Cidade Partida”, do jornalista Zuenir Ventura, é que pode entender a guerra contra o tráfico no Rio de Janeiro.
Se fosse externa, já seria a terceira guerra mais longa da história da humanidade; são mais de trintas anos de confronto sem vencido nem vencedor. Igual à guerra comum, as baixas são de ambos os lados e também do terceiro lado – que é a sociedade, vítima inocente da Justiça cega.
Pelo tempo de duração e, especialmente, pelos resultados pífios, essa guerra contra o tráfico no Rio de Janeiro contraria a tese do general e pensador chinês Sun Tzu, segundo o qual toda guerra demorada enfraquece o erário.
Essa guerra contra o tráfico também contraria outra verdade de Sun Tzu, segundo o qual o objetivo de toda a guerra é a paz – e é mesmo, com exceção da guerra contra o tráfico no Rio de Janeiro.
É preciso entender que “tráfico” abrange drogas, armas, dinheiro sujo, vantagens, facilidades e o que mais couber no estatuto da criminalidade.
O livro do Zuenir Ventura conta como tudo começou e tudo começou, ó, faz tempo. O embrião vem de longe.
A propósito, eu tenho a experiência própria em 1975. O governo militar proibiu o jogo de bicho e, como se vivia num regime de exceção, os bicheiros cariocas tomaram o cuidado de não afrontar a proibição – que não valeu na prática, mas o jogo ficou menos ostensivo.
Pois bem; eu vinha pela calçada da Santa Casa de Misericórdia com um amigo (marido da minha prima) e chutei uma caixa de sapato que estava presa por um elástico ao pé de uma árvore, na esquina.
Não consegui dar cinco passos e fui seguro por dois policiais, que me abordaram aborrecidos. Eu não entendia o que eles estavam falando e só depois de muita conversa é que a ficha caiu: no fundo da caixa de sapato estava escrito o resultado do jogo do bicho; o apostador passava e olhava disfarçadamente o resultado – e eu, sem saber, chutei a caixa.
A sorte é que esse amigo, cunhado do meu primo-irmão Ailton Villanova, era médico e sargento da Aeronáutica; a gente estava caminhando exatamente na direção do QG da Aeronáutica – onde o sargento Vieira era telegrafista, quando não estava exercendo a profissão de médico.
Conclusão: em 1975, em pleno regime militar, aqueles dois policiais não estavam ali na esquina para proteger a sociedade e sim uma caixa de sapato com o resultado do jogo do bicho.
O tiro que matou o jornalista da Rede Bandeirantes, que cobria mais uma batalha inútil da polícia com os traficantes nos morros cariocas, acertou em cheio a sociedade porque foi disparado pela arma da reação à hipocrisia nacional.
O tráfico não é mais um problema da polícia; o tráfico é um problema de estado e não pode ser resolvido apenas com a força.
O tráfico é um problema típico que se ilustra na música do compositor cubano Silvio Rodrigues, “Sonho com Serpentes”, que diz assim:
- Eu mato e me aparece outra maior.