Ele não se lembrara bem de quando fora a primeira vez que havia sido contemplado com aquela visão.
Ela, toda de branco, da cabeça aos pés, lindíssima.
Ele não a conhecia, nem se atreveria a tentar.
Seria paixão platônica para o sempre e, por isso, inatingível?
Já se passara um ano do tormento, do desejo reprimido. Da vontade de arrancar-lhe as saias, panos, apetrechos. De perguntar-lhe o nome e beijar-lhe a mão. De fazê-la sua.
Simplesmente sua.
Este era o dilema de Esmeraldino Pontes da Silveira, 37 anos, solteirão, sedentário e sedento por um romance que a vida sempre lhe negligenciou.
Esmeraldino, pobre diabo sem eira nem beira, cansado da rejeição perene do sexo oposto, este sempre disposto a um não seguro e sonoro diante de sua face de enjeitado solitário.
Mas de uns tempos para cá a possibilidade de beijo, sexo e companheirismo se avivara em sua esperança.
Desde que vira aquela misteriosa mulher a passar na sua frente, na porta da loja em que vendia móveis mesquinhos e de péssima qualidade, em prestações tão infinitas quanto o seu acanhamento e depressão por viver sozinho.
Era sempre na mesma hora. Antes da seis da tarde. Seria alunicação? Porque somente ele a via?
Ele já anotara percurso.
Ela, alva como a lua, de uma pele sedosa e juvenil, cara de ninfa, passaria a sua frente encoberta por um véu, pálida e sensual, expressão pura do desejo contido.
E, quando em sua frente, seria aquele sorriso constrangido de quem quer, mas não pode. De quem é, mas não está. De quem aspira, mas não materializa.
Um olhar de convite e de comiseração que o enfeitiçara o ainda homem mortal.
O terço na mão da jovem chamava atenção, além das carnes, das curvas. Restava de intrigante um avolumado de questões: quem seria a donzela? Qual seu nome? De onde vinha e para onde ia, sempre na hora da Virgem Maria, pontual e irredutível.
Um dia, um mês, um ano. A angústia em progressão. Esmeraldino só queria conhecê-la. Na intimidade do lar, ensaiava no espelho do quarto que habitava no pensionato “só para rapazes”, também no Centro da cidade que era de sol, de mar, mas de infâmia cinzenta e podridão.
- Boa noite! Esmeraldino Pontes da Silveira, seu criado!
Formal demais!
- Oi, Esmeraldino. Seu nome? Apressada?
Monótono demais!
Não acertava o ritmo, o compasso ou o início do enamorar. Mas estava decidido a desvendá-la e ser todo dela, para toda a vida.
Naquela tarde ele se decidiu. Iria segui-la. Conhecer sua morada. Investigar seus hábitos. Tomar nota de seus segredos para, assim, cortejá-la com eficácia.
No horário de sempre, despontou a mulher. Roupa de uma brancura imaculada, véu, terço na mão, cheiro de flor a impregnar. Sorriso contido, de aceite da fome alheia, como que um chamamento ao solteirão.
Esmeraldino passou a segui-la, sabendo que ela sabia da trama que se passara a desenrolar já que, vez por outra, ela virara o olhar e percebia o amado e seu compasso.
Seis, sete, oito horas... ruas do Centro, do bairro vizinho, ruelas adjuntas ao porto, beira mar. Esmeraldino a seguia e ela, impávida, seguia em cortejo.
Enfeitiçado ele não amenizara as passadas, até que a moça tomou caminho estranho, soturno, macabro pelo desconhecido e assustador pela certeza do fim.
Pelos becos de trapiches e armazéns de açúcar, foi-se de mansinho e adentrou no cemitério quase na orla.
O que faria lá?
Esmeraldino foi conferir.
Foi quando a dama parou diante da sepultura, virou-se para o homem já estupefato, tirou o véu e mostrou sua boniteza irreal e sublime como prova da tentação reforçada por uma risada grossa, vigorosa. Impressionantemente bela!
Esmeraldino petrificou-se. Enfim um riso, enfim a imagem do rosto sem a cobertura do tecido poroso.
Momento de êxtase ao qual se sucedeu um instante de espanto.
Sob o luar de Jaraguá, após a sinceridade da, enfim, alegria, ela desapareceu como fumaça.
Foi quando Esmeraldino olhou a lápide e viu a identidade de seu sonho: "Maria Alice Caldas de Fontoura, 1856 - 1871, Jazes Tu Flor Mais Bela da Vila de Massayo, Saudades Eternas".
Esmeraldino não teve dúvidas. Foi para a praça e jogou-se diante do primeiro caminhão carregado de melaço que percorria o rolamento.
Suicidou-se de sopetão.
Viveria, enfim, um romance enquanto morto, junto da única mulher que lhe ofertara, descompromissada e generosa, um sorriso sincero de amor.
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