O Isaltino era aquele sujeito que de tão bom não prestava. Para ser santo, faltava só a beatificação.

Sessentão orador de novena, careca e barrigudo, nariz de “porrote”, papa-hóstia dominical mais assíduo que o vigário, não bebia, não fumava, não namorava em pé. Não comia carne vermelha, não sambava, só comprava à vista.

Dizia odiar sinuca, futebol, jogo do bicho, “mulher da vadia”, trio elétrico, carnaval, e achava a Ivete Sangalo à encarnação do Belzebu!

Nunca tinha pulado a cerca.... jurava que nuuuuuuunnnnca!

Na casa quem mandava, naturalmente, era a mulher. Ou a mãe dela, velha “entrona”, futriqueira, maledicente e “veiaca”. Todo mês o manso do Isaltino fazia empréstimo a fundo perdido para a jararaca, que não só não pagava como ainda esculhambava o “traste”.

Com os filhos, era uma moleza só. Passava a mão na cabeça “dus meninu” e considerava naturais os “chumbrego” das “fia” com os marmanjos que entravam e saiam de sua casa. Dizia que era mal da idade que acometia a “qualquer menina, sem ter nenhum remédio em toda a medicina”.

Todo o bairro o chamava de corno. Mas ele não ligava. Pensava que era pura calúnia.

Afinal, achava natural a Glorinha, esposa cinquentona e mulher “bondosa” e “samaritana”, abrigar o “primo” Jorjão em casa. Jorjão, 24 aninhos, surfista, bom vivant e “pegador”.

Qual mal havia a mulher dormir com o primo, que tinha medo de escuro, trauma de infância, sonambulismo?

Até que um dia.

Pumba!

Morreu o Isaltino!

De repente!

Infarto fulminante! Sem chance!

Foi em plena repartição. O recém defunto nem percebeu a morte morrida.

Muito choro, muita lamentação!

Morreu um santo homem!

O velório foi concorrido!

A cada minuto, mais gente a chegar!

Glorinha, viúva negra, recebia aos prantos parentes, amigos e agregados. Fingidos ou verdadeiros. Não importava! Aperta mão, beija rosto, recebia e dava tapinha nas costas!

Falsidade pura de cascavel destilava a esposa, com a sogra-mãe, bruaca maior, a engrossar o coro do pranto fingido.

- Eu quero irrrrrrr junto meu grande amooooorrrrrrrr! Gritava, transtornada e “chiliquenta”, a viuvinha!

- Me leeeeevvvva Isaltininhooooooooo! Urrava a falsa!

Até quando chegou um homem de terno, pasta de couro, volta brilhante dourada e cara de boi bumbá! Na mão um afago e no ouvido da mulher a mensagem da dívida astronômica que o marido deixara no carteado. Dinheiro perdido no jogo, dinheiro a ser pago para azar. Tintin por tintin... tostão por tostão...

Até que quando chegaram uns 30 biriteiros cheios de aguardente, tal qual homem tocha com fogo a ser aceso a partir do bafo etílico avantajado. Foram tomar a última com o finado “Isinho Porreta”, colega de boemia e de raparigagem, financiador de mulher de vida difícil no cais do Porto e tomador fino de pinga de cabeça.

Até quando chegou por lá o “portuga” dono da pastelaria, dando pêsames e dando, paralelamente, prazo de 30 dias para a desocupação do imóvel já vendido pelo falecido e já pago pelo “empresário, ora poissshhh...”. A casa há tempo não era mais da família. Isaltino vendera e queimara o patrimônio, sem ninguém saber.

Até quando chegou no velório, caixão aberto com defunto dentro, uma negra de ancas largas, pele firme, bocão avermelhado. Seios caindo para fora de volumosos e suculentos, a mulher, de véu escuro e cara de tristeza, carregava uma cordinha de uns 7 meninos, em escadinha! Isaltino Júnior, Isaltiel, Isalzírio, Isalro, Isalnando, Isalnildo e Juvêncio Modesto dos Santos Neto, o Netinho, filho que recebera o nome do pai do pai agora cadáver.

- Dá adeus para o papai, “môs fio”!

Até quando Glorinha, de canto de olho e de ouvido, ouviu resmungo da Jacira, menina moça de 18 aninhos, serelepe e faceira, gostosíssima, objeto de desejo da molecada da região. Comentava a galega sarará sobre o desempenho fogoso do coroa morto, de sua mão boba aberta e sempre pronta a “ajudar” mediante a honra de ter sido seu professor nas artimanhas do amor e da boa cama saliente.

Glorinha, branca, desmaiou! A mãe dela, quase teve AVC. O Jorjão deixou a Central de Velórios de fininho...

Teve gente que achou que a face do Isaltino dentro da urna funerária, cheio de flor e mão cruzada sobre o peito com terço do Sagrado Coração de Jesus entrelaçado entre os dedos, era de pura felicidade.

Morreu plácido este pai, esposo, servidor público, amigo, vizinho, irmão e parente querido.

- Muita gente comentou que ele parecia ter morrido sorrindo!

Parecia ainda sorrir deitado no esquife.

Deveria estar alegre!

Teria cumprido sua missão na Terra.

Com certeza, viveu a vida de um homem bom!

 

 

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