Pobre, miserável, sem esperança...

Mas vagabundo nem preguiçoso não era. Muito menos revoltado com a vida, abusado ou indolente. Tinha um ânimo descomunal, embora a face sofrida e as roupas maltrapilhas revelassem a alma amargada pela dureza do viver.

Dava duro, burro sem rabo de carroça de catar reciclável, meio de sobrevivência da família, ainda pequena. Ele, a mulher, e o filho José da Silva, o Júnior.

A mulher, bucho quebrado pela má alimentação, cabelos avoados, vaidade existente, mas anulada pela escassez do vil metal. O filho, um ano e pouco, raquítico, vivente por teimosia.

Naquela véspera do dias dos pais, mais um dia de aperreio. “Ai meu Padim Padi Ciço!” exclamava o trabalhador temente de Deus e dos homens, deixando a casa vazia, e a mulher e o filho de barriga seca.

Papelão por quilo teria, mas pouco em dia anterior ao dia de grande festejo familiar. E a missão era gigantesca: não voltar para casa de mãos vazias.

Mas era brasileiro, e não desistia jamais. Ao sair, olhou Maria, que baixou cabeça como sinal de comiseração. O Júnior no berço surrado, menino traquina e mirrado, choraria em breve exigindo o de comer. O peito da mulher já secara e enganar o menino com farinha, água e açúcar era a solução.

Cabeça pesada de vergonha, própria de quem sabe o que é mais do que aperto, pegou a corroça e saiu. No barraco na Vila Emater com energia de “gato”, tomada e bocal, no escuro tinha passado a noite anterior sem sequer querosene na lamparina.

Mas o “déficit nutricional” do Júnior era o que mais doía como peixeira no coração. Fazia sangrar a honra.

“Meu Padim!”, pensava! E correu, lixeira a lixeira, depósito a depósito. Papel fino e grosso e garrafa PET ou latinha de alumínio eram ouro. Em seus locais de trabalho a coleta era digna pelo esforço, mas desumana pelas condições e pelas contradições que revelava. Uns com tantos, outros com tão pouco.

Roubar jamais. Era “caba macho, caba hômi”. Jamais envergonhar o Padim”!

Pensava, no trajeto inteiro embaixo do sol, sob esculhambação de motorista e olhar atravessado de madame, só em uma “coisa”, e esta “coisa” era o Júnior. Sua cara, seu porvir.

Domingo era Dia dos Pais, e a data próxima o dava ainda mais energia... rastreava o que catar, e catava a valer.

Mas o muito que colhia, em muito pouco se convertia. Já se fazia tarde, o relógio não cessava. Hora de ir para o galpão, pesar e receber. Foi já a noitinha e de lá saiu ainda mais rebaixado.

Total do dia de batente: oito reais e sessenta e cinco centavos. Pegou cédulas e moedas e abraçou os cobres.

Era pai, mas como pai não conhecera, havia prometido fazer daquele primeiro Dia dos Pais como pai um Dia dos Pais especial.

Mas com que dinheiro? Como? Oito reais e sessenta e cinco centavos.

E tinha o Júnior, único merecedor de homenagem naquele dia. Perto dele, sem blasfêmia, até o “Padim” podia esperar um pouquinho.

Com o dinheiro apertado e literalmente suado na mão, entrou no supermercado, para ele ato raro. Lá, opções mil, possibilidades quase zero.

Escolheu o óbvio fundamental. Uma lata de leite em pó, da mais cara entre as mais comuns. Com ursinho pintado na lata! Seria alimento e brinquedo, concomitantemente.

Passou na gôndola sob olhar atento do segurança e enviesado dos demais clientes, que reclamavam das roupas, do odor...

Mas seus ouvidos estavam bloqueados. Só ouvia em sua mente os sorrisos imaginários do Júnior, em sua primeira mamada do pó que só via em novela.

Uma honra! “Obrigado Padim Ciço!”

Saiu já feliz! Corria para casa, no trânsito caótico da cidade. O leite pendurado na carroça. Pelo menos o “minino” teria sua homenagem. No Dia dos Pais, alimentar o rebento era seu maior presente como pai.

Foi quando uma camioneta de um sujeito mal educado buzinou, buzinou, deu dedo, jogou em cima dele o ronco do motor potente a diesel já na saída do supermercado. O motorista grandão estava estressado. O carroceiro sem cavalo viu rápido, foi tudo em fração de segundo.

Só deu para perceber que dentro do carrão importado, um menino loiro, bochechas coradas, cara de anjo, chorava demais... e o grandão ao volante esbofeteava a companheira, que tentava se proteger fazendo reluzir um relógio incandescente, cor de ouro de quem tem posse, de quem pode mais.

Foi o único momento em que o sorriso do Júnior saiu de sua mente. A queda foi grande. A camioneta carregada de feira de rico cantou pneu, rabeou, jogou o carroceiro-romeiro no chão.

Morrer ele não morreu, mas se machucou. Todavia se levantou, bateu a poeira e já ia dar partida na carroça.

Antes olhou para o chão. Uma sacola caíra do possante! Olhou para os lados, para a frente... a camioneta fugira no horizonte. Sumira. Era pegar ou deixar o pacote.

Pegou. E abriu.

Dentro, uma lâmpada, um frango assado e uma bola “dente de leite”, tudo junto, embrulhado com a preguiça e com o descaso dos que não precisam.

Não acreditou. Correu como louco para o barraco ao lado do Lixão de Maceió.

Aquele seria um Dia dos Pais mais que especial. Teria banquete, luz e comida e, de quebra, distração para a criança.

Antes de chegar no barraco, comprou uma vela com os centavos restantes. Chegando em casa, com lágrimas nos olhos, acendeu, orou, dormiu. Agradeceu ao Santo do Juazeiro.

José da Silva, brasileiro, alagoano, teve um domingo inesquecível.

Domingo que, infelizmente, muito pai no mundo não tem.

 

 

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