Não cruzei a Ipiranga com a Avenida São João.

Mas estou em São Paulo.

A cidade que nunca para hoje deu uma pausa na sua histeria automobilística e deu lugar a uma dezena de milhares de pares de tênis!

Maratona Internacional de São Paulo, 42 km e alguns metros, em sua décima sétima edição.

Resolvi correr somente a corrida de 25 km. Um desafio que me obriguei cumprir este ano, até porque não queria estragar a festa dos quenianos!

Seria muita falta de cortesia tirar esse pessoal do Quênia e fazê-los comer poeira.

A cidade de São Paulo amanheceu fria. O sol preguiçoso dava mostras de que estaria presente (e até esteve...). Mas nada de exageros. Dia lindo, ensolarado, mas sem a temperatura nordestina que nos brinda a cada manhã.

Em especial em Alagoas, terra abençoada, minha terra por amor, por opção livre e apaixonada!

Na largada, os quenianos já me olharam agradecidos por saber que eu não estaria lá apressando os seus passos. Preferi ficar com o "povão", alma e graça da maratona.

"Povão" que era uma mistura de paulistanos, cariocas, pernambucanos, cearenses. Gente que carrega consigo o espírito do esporte. O real espírito esportivo de união e superação.

Juntos e misturados, todos estavam lá!

Ali o congraçamento era a palavra de ordem: brancos, negros, mulatos, orientais, homens e mulheres de todas as idades com o pensamento comum. Ou seja, correr!

Alguns por uma causa qualquer, outros por estética, outros por questões de saúde, alguns cumprindo promessas.. Eu tentava falar com todos ao meu redor.

Apresentei-me como genuíno alagoano de coração que sou e vendia nossas belezas convidando os corredores a visitarem nossa capital. Em setembro teremos uma corrida no calendário nacional de provas, grande oportunidade para nossa cidade.

Foi assim que conheci “Seo” Agenor, um senhor de uns 76 anos de idade, vestido com camiseta de nome genial na estampa: “Vovôcops”!

"Seo" Agenor, "figuraça" que de antemão perguntou por que eu não iria enfrentar os 42 quilômetros e 195 metros. Expliquei a minha cortesia com os quenianos.

Ele riu e entendeu as minhas fortes razões!

Dada a largada, a Avenida Jornalista Roberto Marinho se mostrava pequena para tantos pares de tênis que, apressados, queriam um lugar, um pedaço de chão para colocar sua marca, suas frases, suas faixas, seus rostos... na Rede Globo (muitos "filma eu", e tudo mais)!

A Ponte Estaiada, um cartão postal em arquitetura, dava-nos as boas vindas.

Foi nesse exato momento que tudo começou a acontecer!

São Paulo a cinco minutos por quilômetro!

São Paulo literalmente aos meus pés.

Minha vida em filme, rebobinado, em revisão. Eu com os pés no chão das ruas em que andei, sofri e vivi.

As lembranças jorraram desordenadamente quando de repente avistei a placa apontando Osasco, minha cidade natal.

Lembrança da minha doce avó Esmeralda e do cortiço onde nasci e cresci vieram docemente ocupar meus passos.

Tempos amargos? Jamais!

Tempos doces em afeto, severos em lições, essenciais em exemplos de caráter e solidariedade.

As lágrimas foram inevitáveis e se juntaram com o suor das pisadas que foram suaves dali em diante.

Corri lembrando-me da minha história, dos muitos desafios que já tinha atravessado, dos amigos de infância, da ajuda ao meu avô na barraca de feira onde vendíamos limão

Parecia ouvir naquele momento, entre o som indescritível dos corredores, a música dos caixotes e a canção dos homens e mulheres da feira: Olha o limão, tahiti, limão doce para mulher bonita, limão azedo para quem não for...!

São Paulo não me parecia mais uma selva de concreto!

São Paulo começou a mostrar uma face humana que de há muito eu tinha perdido a lembrança.

Aos 22 km entrei na USP e revivi a lembrança das reuniões da UNE em que eu participava em tempos de estudante universitário.

Época que conheci Lula, Leonel Brizola, Ulisses Guimarães. Todos lutando por Diretas Já!

A democracia era nosso alvo!

Época de descoberta de amores, paixões realizadas (e algumas frustradas...), "apertos" financeiros, sonhos, risos, festas, amizades, ilusões e aprendizado.

A vida que eu queria que me coubesse, que me abraçasse...

A vida que meus amores e meus filhos, meu trabalho e minha decência hoje me fazem acreditar que conquistei.

Finalmente completo os 25 km, ainda chorando, emocionado, arrependi-me por não ter feito os 42 km e 195 metros da Maratona.

Teria mais o que revisar em minha existência. Mais tempo em corrida para refletir. Mais chances de aprender.

Estaria pronto para dar uma boa lição aos quenianos, ainda que a descortesia fosse só fachada e só subterfúgio para meu cartão de visitas pessoal e afetivo.

Para meu voltar a mim mesmo.

Para meu redescobrir.

 


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