Só “alisava” duas coisas. Uma menos: o Voyage 86. A outra, bem mais: a “Nêga” de casa. “Nêga” que nada tinha de “nêga”, já que era conhecida na Baixa do Sapateiro como Matilde Galega, coroa de coxas torneadas, soteropolitana nascida no Rio Vermelho, branquinha e fogosa, chegada até demais numa “negritude”, generosa com homem afro-descendente e com espécie macho em geral.

Mas para Zeca Biriba ela era simplesmente a “neguinha”. Zeca Biriba, 57 anos, capoeirista “aposentado”, dente de ouro na boca, cabelo branco que nem “Preto Velho”, torcedor fanático do "Baêa" e taxista em Salvador. Ciumento e doentio, complexado com “peruca de touro”, deixava até marmanjo se encostar no Voyage, mas se “triscasse” na Matilde, aí era alteração. Paranóia de corno, 30 anos de casamento, 30 anos de desconfiança. Nunca provada, mas sempre aventada e pressentida.

A “Nêga” era vigiada à distância 24 horas. Em casa tinha câmera. Se desligasse o celular era confusão. Mercado, feira, salão, comércio, extrato de conta bancária. Tudo com Zeca por perto e “curiando”. Deixava passageiro para conferir se havia alguém “conferindo” a esposa. Decote, calça justa, costa nua, “saieta”, nem pensar. E se entrassem no táxi e puxassem o assunto “cornagem”, aí era mal presságio, agouro, premonição, razão para comprar briga e levar “aú”.

Naquela manhã acordou cedo, tomou café, “esquentou” o “possante” e foi ganhar a vida. Quando passava no Dique de Tororó teve uma tontura... olhou a estátua de orixá gigante, ele parecia se mover... vertigem... fechou os olhos, freou o carro. Quando viu, um passageiro todo de branco já estava no banco de trás. Esquisito. Solene. Cara fechada. Parecia flutuar.

- Toca “pru” “Bomfim”, ordenou aquela “entidade”.

E lá se foi Zeca. Quem seria aquele homem? Desconfiado, começou a corrida. E o papo com passageiro, para ganhar confiança, gorjeta e matar a curiosidade.

- Manhã quente hein? Começou Zeca.

- Boa “prá” “mulé” “gaêra”. Boa “di” ponta “butá” “mizifi”! Respondeu, na lata, o estranho homem.

Não era possível! Assim era demais. Deixara a “Nêga” em casa, tomada banho, cheirosa com aqueles cabelos amarelos de diaba, pronta para ir ao Mercado Modelo, cheio de capoeirista safado, ousado e gavião.


- O que o senhor disse???? Espantou-se desconcertado o motorista.

- “Qui” “ôge” é dia. Manhã de “bafu” “quenti” “qui” nem catinga da boca do “tinhoso”. “Isquenta” fogo de dona “fogosa” e fura chifre em cabeça de “maridu” “mansu”.

- O quê???????????????? Alterou o condutor.

Matilde se levantara cedo, mas tinha dito que só sairia mais tarde, depois de “barrer” a sala, arrumar o quarto, tirar folha do terreiro. Depois... Ah, depois ia visitar o tio no Mercado Modelo. Quem sabe, ir ao São Joaquim. Mas o que importava agora era a fala da “entidade”. Ficou branco de pavor Zeca Biriba. O passageiro continuava.

- “Vossuncê” “num” sabe? “U” “mundu” é “bandidu”. “Si” “fô” “mulé” “alorada”, cabelo “di” “fogu” e coxa “ruliça”... ai é perdição. O “cablocu” é quem diz: “cabeça galega, “córniu” da “nêga”!

Zeca ficou maluco. Ao ouvir a setença, freiou o carro!!!!!! Rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr, cantaram os pneus do carrinho. Era isso, era seu pai Exu que tinha mandado aquele vulto. E agora?

- O senhor conhece a “Nêga” não é! Me diga! Exigiu o taxista, transtornado.

- “Du” mundo “cunheçu” “di” tudo. Até “nêga” “frex”, preta no “nomi” e “capaceti” “sarará” “alisadu” em “babosa” em Iemanjá “num” usa.

O condutor do Voyage 86. Acelerou. Vruuuuuuuuuuuuum... Aquilo só podia ser pesadelo. Nada mais falaria com o homem até a Colina Santa. Fez o trajeto em tempo recorde, sem olhar mais para o banco de trás. Quando chegou lá, nem a corrida iria cobrar. Queria se livrar do “spritu”. Parou o carro, virou o rosto. Nem sinal do homem de branco. O banco estava vazio.

Não contou mais tempo. Saiu desembestado até a casa no Cabula. Quase provocou acidente, atropelamento, queimou sinal, foi xingado de filho da p... por 765 motoristas. Não se importava. No caminho, ligou para o celular de Matilde: “este número está desligado ou fora da área de cobertura”. No fixo, ninguém atendia do outro lado. O tio “Manél”, ao fone, estranhou a futura visita do dia: “ – Matildinha aqui? Sei disso não!”. Zeca Biriba quase enfartou.

Parou em frente a casa e foi logo entrando, quase arrobando a porta e a porteira. Nem bateu, nem chamou, nem gritou. Perdeu uns 3 minutos abrindo tudo o que é de grade e de cadeado que, paranóico, mantinha. O Sansão, vira-lata da família, latia que até tio “Manél” escutava. Encontrou a mulher meio descabelada, com vassoura na mão. A casa em processo de limpeza.

- “Nêga”, assim você me mata minha santinha. Esbravejou com voz mansa o Zeca.

Ajoelhou-se, pediu perdão à mulher, beijou-lhe os pés. Matilde petrificada, nada entendia. Zeca deu-lhe um “selo” na boca, seu dente de ouro brilhava. Nem adentrou a casa. Saiu, deixou a galega no cômodo com vassoura na mão, tão pálida e pasma que ela não soltou um “a” sequer, não fez um movimento de corpão.

Entrou no táxi, e se foi. Cantarolava canções de Bethânia sobre amor, loucura e devaneio. Dentro da casa, Matilde corria e, por debaixo da cama, reforçava ao Juvenal – musculoso marinheiro “Ricardão” que “sabia ser loucura ‘na casa’ dela. Que da próxima vez o ‘quartinho’ dele em Brotas seria mais seguro”. E que “aquela foi por pouco!!!!!!”.

Daquele em dia em diante Zeca nunca mais passou na orla do Dique. Corrida lá não pegava. Se passageiro insistisse dava desconto, fazia baldeação com colega da praça.

E reforçou seu laço de confiança e paixão cega com a “Nêga”.

 

 

Sigam-me: twitter.com/weltonroberto