Devoto de santo fervoroso, achava tudo que não fosse da igreja coisa do “satanai”, assim mesmo, sem o “s”, sem acento e com “i”.

Juvenal se benzia quando levantava, antes de por o pé no chão e antes do café da manhã. E ao final também. Some-se mais bênçãos: antes e depois das refeições, diante de “campo santo”, às 18 horas, antes e depois do jantar...

Recatado, não assistia TV porque “não queria ver a até onde iria a ‘senvergonhice’ do povo” nas novelas, filmes, realities shows.

Em casa, era pai dedicado, durão, moralista, conservador, 24 horas disposto a preservar a moral e os bons costumes, vigiando mão de namorado de filha e chamando Marluce, a mulher, de “minha santinha”.

Mas a prévia de carnaval ia acontecer, janeiro já quase se findara, e, principalmente, tinha a Silvana.

Ah! Ui! Ufa! A Silvana!

Era a recepcionista da repartição. Dizem que era “da conta” do presidente, mas não fazia mal. 

Juvenal a "secava" diariamente. Também, ela era a encarnação do Belzebu de tão apetitosa. Nela, tinha caprichado o “cramulhão”. Loira oxigenada, adepta de academia, 1,60 metros, “jeito de menina e gosto de mulher”.

Ela retribuía a "secada" e, no amigo secreto de fim de ano, fez o convite: segurava o estandarte do bloco “Pecado da Carne” no Jaraguá vestidinha de diaba e queria ver se o “Ju” era bom de “mastro” no desfile da sexta pré-Pinto da Madrugada.

Foi o janeiro mais longo de seus 43 anos aquele. Passou o mês matutando uma saída, uma desculpa para ganhar o “vale-night” da “santinha” Marluce na sexta-feira 25 de fevereiro, dia de agitação no Jaraguá “velho de guerra”.

Pensou, fez planos e concluiu, anunciando desculpa à altura da esposa “amélia”: iria no dia 25 “pagar horas devidas de trabalho à Secretaria, já que o secretário recém empossado era durão e a última sexta do segundo mês do ano teria que concluir balancete geral para o governador. Um esforço no ajuste as contas públicas e no cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e blá blá blá..."

A “Santinha” nada entendeu, mas, redimida, aceitou o “esforço concentrado em prol da reversão dos péssimos indicadores sócio-demográfico-econômico-fiscais-contábeis do Estado”, como alegara Juvenal, senhor da autoridade e voz da razão.

Silvana, quando comunicada pelo “garanhão” de que ele iria às prévias, lambeu os beiços e mordeu os dedinhos da mão. E pediu, com voz mansinha e carregada de desejo: “vai de ‘diabão’. Quero te ver soltando fogo pelas ventas”.

Dominado pelo instinto animal de caça à fêmea ele, quase um fundamentalista Cristão, não resistiu. Rezou, orou, pediu perdão antecipado, mas comprou pela Internet a fantasia de nome “Xô Tinhoso”. Capa preta, chifre pontiagudo, rabo, garfão de espeto vermelho e máscara de careta... que pecado meu Deus!

Recebeu o pacote lacrado na repartição, escondeu embaixo do espete do carro. Quinze dias se passaram e, todo dia, Silvana provocava quando ele chegava: “quero arder no fogo do inferno...” dizia a pecaminosa.

Até que o grande dia chegou. Era manhã de sexta-feira, 25. Para provocar ainda mais, Silvana foi de mini-saia vermelha cor de sangue. Quando “Ju” chegou ela se levantou do birô e cochichou em seu ouvido: “a ‘caçola’ também é encarnada...” Juvenal quase infartou.

Lá para as cinco da tarde, ligou para “santinha”, com dor na consciência amenizada pelo tesão da falsa loira: “hoje é só hora extra. Viro a noite aqui. Balancete tem que ficar pronto. E mais, bateria do celular descarregando....”

“Santinha” compreendeu.

Juvenal se trocou dentro do carro, maior sufoco, numa rua esquisita lá na Levada. Já eram umas 7 da noite, escuro para não dar bandeira. Deixou o carro atrás das Americanas e foi andando até o Jaraguá. Um vexame! Mas valia a pena.

Ele, todo de diabo, com aquele garfo enorme, foi o centro das atenções. Chegou cedo nas prévias. O “Pecado da Carne” só saia lá para as 11 da noite. Jeito foi esperar... a cada folião que passava era foto, zoada, onda com a cara do diabão. E nada da Silvana!

Para passar o tempo, tomou uma cervejinha, coisa rara em sua rotina de beato. Tava calor e tomou mais outra. Suando muito, foi para a terceira, a quarta, a quinta... Por volta das 22 horas já tava no meio do frevo, garfão na mão compassado. Multidão na rua. E nada da Silvana!

Quase meia noite ele já biritado, suado, com a máscara na cara para não ser reconhecido. Avistou a loira, de biquininho vermelho, meia calça vermelha, maquiagem na face e chifrinho prateado na cabeça. Enfim, a saga do “mastro”, anunciada antes do Papai Noel, teria vez na Folia e Momo.

Trocaram olhares. Ela piscou e sorriu. Ele se entusiasmou. Com o estandarte do “Pecado da Carne” ela acenou. Ele pensou em um convite, mas era um adeus.

Foi ela virando o rosto para um bombadão de uns 25 anos passar a mão na cintura da recepcionista e tascar-lhe um beijo apaixonado e loooooogoooooo.

Sim, o fogo da venta virou gelo e se apagou. O grande “mastro virou canaleta de bandeira de plástico. Diabão virara anjinho!

Com mais de três na cabeça e já vestido de Lúcifer, o jeito foi cair na gandaia. No sábado voltaria à santidade e ao pudor extremado.

Caiu na folia. Afinal, não via cachaçada e safadeza há uns 20 anos. Beijou, ralou, bebeu. Amanhã, seria outro dia.

O “Pecado da Carne” se foi, com Silvana e o bombadão à frente. Outros blocos se sucederam e ele no meio, agitação total.

Foi de onde, num lance de olhar, ele teve uma visão, meio de longe: uma mulher fantasiada de santa, de véu, uma tiara de penas azuis na cabeça, toda de branco, baixinha, quarentona, quartuda... a cara da Marluce!

Não seria possível! Deveria ser miragem! Era efeito da “marvada” cerveja!

A santa estava enroscada com um garotão, cada beijo de dar nó em língua. Não, não era a “santinha”! Beijo com ela, só selinho, namoro só de porta, sexo, só no escuro.

Juvenal ficou intrigado. Viu o casal entrar num beco do Jaraguá portuário e, de longe, um vai e vem dos corpos de ambos em pegação.

Não, certamente era alguém só uma qualquer parecida. Deixou prá lá!

Diabão ficou sem Silvana. Esperou amanhecer ao lado dos “fim de festa”. Vestido com a fantasia, foi buscar o carro no centro. Num posto de gasolina lavou a cara, vestiu a roupa e foi para casa.
Com o cano da loirinha, voltaria a vida de recato.

Abriu a porta da sala, a mulher dormia no quarto. Tomou banho. Foi se deitar para dar um cochilo já com o sol claro.

Deitou-se ao lado da “santinha”. Estranhou um lençol branco no chão meio abarrotado e, quando acordou, viu a mulher recolher uns penachos turquesa que estavam no chão.

“Era coisa da filha, trabalho de carnaval da escola”, dizia a mulher.

Juvenal ficou intrigado, pensativo.

Será?

Mas, para não sofrer ainda mais depois do “desacerto” com a Silvana, optou por se satisfazer com a idéia de que chifre, em sua cabeça, só o da fantasia carnavalesca do "Xô Tinhoso".