Era tempo de amigo oculto. E ele odiava participar de qualquer comemoração, qualquer festa, qualquer ocasião onde houvesse música, dança e gente feliz!
Era o homem mais ranzinza do universo. Antissocial, solteirão, rabugento, sovina. Mas julgava-se certo e correto, durão, inatingível. Eram 47 anos de celibato e resmungos! Música, só clássica. Bebida, só de vinícola!
Se o OF. do ofício viesse sem ponto final, o processo voltava. Carimbo com tinta fraca, retornava a papelada para o departamento de origem. Mais “Caxias” que o Duque, fazia questão de ser chato. E solitário, e infeliz!
Sempre naquela época, não participava do amigo oculto da repartição. Mas fora transferido de setor há poucos meses e, presunçoso que era, pensou que sua fama era conhecida em toda a Secretaria. Não era.
Quando viu, lá estava seu nome, Godofredo Teles, estampado na lista dos participantes da troca de presentes da confraternização anual do 4º andar. Era o fim!
Ai não teve jeito. Foi quase que obrigado a pegar o papelzinho aleatoriamente e sortear um colega (se é que tinha colegas dele ali).
E para sua surpresa sorteou a Dulcinéia, telefonista e vendedora de coméstico e lingerie nas imensas horas vagas do serviço público. Na visão dele, um poço de futilidade, uma fonte de asco e origem de aversão.
- O que? Aquela “ameba”? Resmungou Godofredo. Se fosse o Silveira, chefe do setor, ou a Dr. Marta Antunes, procuradora do órgão, tudo bem, ainda fazia o sacrifício... Mas aquela Dulcinéia, não poderia ser jamais.
- Dulcinéia sempre me olhou atravessado! Pensava ele, com sua mania de perseguição.
Ela, uma mestiça quarentona de mais 90 quilos e metro e sessenta, curta e larga em simultâneo, pagodeira e bebedora de cerveja, carnes do corpo cheias e a sobrar, balofa mesmo, falastrona, desbocada, moradora de subúrbio, sempre de vestido florido, sempre de bem com a vida, contrastava com o ar de lorde mal amado de Godofredo, ele alto, esguio, bigodinho fino, enólogo de final de semana, sempre de calça social ou figurino de garçon.
Ele a repugnava. Ela, o tolerava, aparentemente. E assim, iam vivendo.
Quando ele chegava no prédio, quase sempre cruzava com ela. Muitas vezes pegavam elevador juntos. Às vezes, nem bom dia trocavam. Ele percebia ser fuzilado pela mirada fulminante dela, ser alvo de comentários em sussurro dela com a Josefa ascensorista. Mas repelia, ignorava, tentava não ligar.
A festa ia chegando e em Godofredo a tensão aumentava. Iria ter que descrever em público aquele ser, abraçá-lo, beijá-lo no rosto de fininho e entregar o presente, desejando feliz Natal. Que coisa estranha!
Tentou trocar de amigo oculto. Pediu ao Gomes, do jurídico, mas Gomes tinha tirado a maravilhosa e curvilínea Regina do RH, e era a chance da “pulada de cerca” natalina perfeita. Tentou subornar o boy-menor aprendiz, mas o rapaz queria fazer bonito com o chefe, a quem teve a sorte de sortear. Falou com o Enéas, da Contabilidade, mas ele se recusou por puro sadismo, só para ver o Godofredo se atracar com a Dulcinéia.
Não houve santo que fizesse a graça. Presente de R$ 1,99, Godofredo comprou um sabonete para o dia, que seria aquele mesmo, mais a noitinha.
Festa no rodízio de pizza, massa à vontade. Godofredo chegou atrasado, propositalmente, para escapar do sorteio e do anúncio. Vai que ninguém esperasse! Mas todos o aguardavam. Era inevitável.
Um a um, começaram a sortear os amigos. Olhares de apreensão.
- O meu amigo é um cara legal e bla blá blá! A cantilena se repetia... Godofredo suava, só queria estar longe dali. Não bebeu, não dançou, suas mãos tremiam, tinha calafrios...
Sentada no extremo oposto da mesa, Dulcinéia estava, para o senso estético dela, deslumbrante. Vestido “tubinho” floral decotado, mais que justo, que realçava seu busto fartíssimo e seus quilos a mais e a muito mais... cabelo de “chapinha” “zero bala”, batom mais vermelho que sangue quente. Espalhafatosa toda! Bebia cerveja, abraçava as amigas, falava alto, ria que se acabava, em alto falante, em decibéis elevados... até fumar fumou.
Os nomes surgiam e nada de Godofredo ser chamado. Cara amarrada, ele não via a hora de o suplício terminar. Até que, enfim, o nome dele apareceu. Januário, motorista do secretario, o abraçou e entregou seu presente. Um espelho de bolso com o brasão do Botafogo!
A hora era aquela. Godofredo, na frente de todos, não tinha como recuar. Voz embargada, e platéia em um silêncio único, diferente do que o feito para todos os outros amigos ocultos, sepulcral mesmo. Godofredo sentiu a “pancada”!
- Minha amiga oculta é............ Dulcinéia! Pronto, falei! Anunciou, já pálido e com pressa! Argh!!!!!
Ao ouvir seu nome, Dulcinéia vibrou! Auauauauauauauaua! E foi buscar seu presente, pulou da mesa feito fera doida, correu com suas carnes a vibrar. Energia e calor em estado puro!
Ao lado de Godofredo, na hora do abraço e da entrega do presente, a telefonista não resistiu. Olhou em seus olhos, intimidou-o. Sorriu com sua boca vermelha gigante. Parecia engoli-lo. Com três doses a mais na cabeça e cheiro de Alfazema em excesso, aproveitou o beijinho dado com esforço pelo amigo já não oculto e agarrou seu pescoço.
Godofredo tentou fugir mas, quando viu, quase paralisado estava, com a língua grossa de Dulcinéia emaranhada à sua. A mesa quase foi ao chão com aplausos, gritos, vibrações... Urrrrraaaaaa!!!!!!
Parecia final de Copa do Mundo. Zuada em todo o restaurante. Todos se abraçavam, em comemoração ao beijo, que enfim acontecera. E que beijo! Godofredo tentou se apartar nos primeiros 3 segundos, mas depois, apertava as costas largas da telefonista. Para desgrudar, tiveram que ter paciência!
Dulcinéia já havia fofocado em todo o serviço público do estado. Aquele homem haveria de ser seu. Daria um jeito naquela chatice! Abriria seu coração para o bom da vida...
Um novo casal se formou naquele dia. Dulcinéia sempre fora caída pelo “cavalo” do financeiro, como Godofredo era conhecido. Sempre dava bola, mas ele não enxergava.
Após aquele amigo oculto, tudo mudou. Godofredo mandou fazer laje na casa de Dulcinéia e hoje, todo o domingo lá tem churrasco e sambão.
Eles se casam em julho e planejam adotar uma menina.
E nunca mais um processo retornou ou foi reprovado no parecer do servidor durão.