Dono do cartório, dividia a autoridade máxima na pequena cidade com o padre, o prefeito, o delegado e a cafetina chefe. Dr. Januário Abreu tinha tudo. Dinheiro, terreno, carro, fazenda, mulher vistosa e um único filho, Januarinho.
Mão fechada, sovina de marca maior, tinha o sonho de ver Januarinho vereador de São Gonçalo. Depois prefeito, deputado, governador... e, quem sabe, presidente da República daqui a uns anos...
Mas a votação futura do filho esbarrava na antipatia do pai. Januário do Cartório, de tão ruim, era odiado no município.
Era tolerado pelo poder de assinar escritura, selar casamento, dar certidão à recém nascido. Mas de tão avarento e “malêducado”, era intragável.
Não dava um copo de água e um bom dia a ninguém. Se ficassem na frente de seu Corcel II – carro novo prá que? – passava por cima.
Esmola, ajuda, doação à paróquia, cesta básica aos pobres, jamais!
Só fez um gasto dos grandes, que foi bancar a faculdade particular de Januarinho, na capital, onde o rebento se formou bacharel em Direito, a muito custo, já que de estudar não era o herdeiro.
Com o filho de volta à terra natal, naquele ano de eleições municipais, seria a vez de fazê-lo parlamentar da Câmara Municipal. Iria implementar tudo o que necessário fosse para ver Januarinho realizar seu sonho da boa "vereança".
Logo no começo do ano, um novo Dr. Januário se mostrou à população. Começou a dar desconto nos “emolumentos”, passou a cumprir a lei e registrar menino de graça. Fazia também casamento coletivo “no precinho”, decorou o andor da Nossa Senhora, “oferenda do 1º Ofício de Notas e de Januarinho Abreu”, como fez questão de inscrever na faixa pendurada na praça da Matriz.
Para tudo isso, era só dar nome, identidade e número do título para ele conferir a votação do futuro vereador.
Campanha em curso e gasto “a rodo”. E o cadastro crescendo.
Fome, ninguém passava mais, já que Januário dava comida misturada com “santinho” de Januarinho. Esforço total para conquistar a maioria dos 1362 eleitores do município, em favor do jovem bacharel já eleito nos sonhos do pai.
Dor de dente, bucho quebrado, ninguém tinha dali em diante. O “1º Ofício de Notas” trouxe médico e dentista. Para consulta, era só mostrar e deixar que anotassem título, zona e seção.
Faltou gás, queria passagem de ônibus? Januário, mão aberta, dava tudo, a contragosto por dentro, mas risonho e pedindo voto para fora.
Promotoria de Justiça caiu em cima contra a “captação ilícita de sufrágio”, mas era tudo “doação de uma alma caridosa e benevolente”, além de intriga da oposição, que sabia que Januarinho “já tava eleito mesmo”.
Dez reais para a cachaça? Ah! Os “biriteiros” de São Gonçalo vibravam quando viam o oficial Januário. Colocavam número falso de título, RG inventado. Preenchiam com "garrancheira"...
Januário, empolgado, vendeu propriedade e arrendou fazenda. A brincadeira era cara, mas valia a pena ver o filho como tribuno, como autoridade promissora da política municipal e nacional.
No dia da eleição, a Lei Seca não vigorou para os cabos eleitorais do dono do cartório. Um total de 32 parentes, de várias cidades, mas inscritos como eleitores de São Gonçalo por Januário, lá foram votar.
Vitória na certa. Era certa.
No domingo, quando a sessão eleitoral se abriu, o agente da “fé pública” já começou a comemoração, fazendo algo que nunca fazia: bebendo.
Começou no vinho “que nem padre embebeda” para conferir os mais de mil números e nomes na lista de eleitores comprometidos com a vitória do filho.
Onze horas, sol a pino, aceitou cerveja que ele mesmo pagara. Teve churrasco, trio de forró. Às 15 estava completamente grogue, nem votar foi. Tirou um cochilo para ir à urna “la prás quatro e meia”.
Que nada! Extasiado com a vitória sacramentada do filho, pegou no sono.
Sonhou com a diplomação e a posse!
Acordou no outro dia. Tudo silencioso. Januarinho amuado. Casa fedendo a álcool, e vazia. Ninguém na porta.
Foi quando recebeu a notícia.
Das nove vagas, Januarinho ficou quase na nona. Teve 117 votos, um a menos que os 118 do Neco de Mafalda, nono vereador eleito, vaqueiro que negociava garrote e distribuía sorriso na feira de domingo.
Januarinho seria suplente, e só. Por dois votos faltantes, teria ulltrapassado o Neco, eleito pelo carisma de fazer negócio com boi e vaca, apertar mão, dar abraço sincero e sempre dar pinga para ele, para os outros e para o santo.
Fez falta a presença do pai na urna eletrônica. E fez falta também o voto de mais um necessário traidor da palavra ilegalmente empenhada e do nome não justificado na listagem.
Palavra não cumprida pelo eleitor “cadastrado”, para o bem da democracia e em vingança ao rabugento oficial de registros.