Era bravo, valentão, destemido! Não levava desaforo para casa. No bar, se olhassem atravessado, era desforra na certa. Na rua, não cruzassem seu caminho.
No racha, futebol de várzea, ninguém furava a zaga, sua área de atuação, especialidade em quebra-canela. E se fosse ele o dono do apito, senhor juiz da partida, era quase jogo de arcebispado, da congregação Mariana. Paz total no campo.
Zeca Mafuá nasceu José Carlos Sousa Reis. O Mafuá veio do ofício do pai, falecido Libório Mafuá, responsável pelo carrossel de cavalo pangaré de madeira, pela roleta de jogo de bicho e pela roda já não tão gigante assim que animavam as festa da cidade, em especial as religiosas.
Pai morto, Zeca herdou o ofício. Com a família, montava e desmontava o negócio. Mulher e filhas na mesma sina de armar quermesse. Deolinda e as meninas eram só respeito ao Zeca.
“Brabo” que nem siri na lata. Grosso que nem parede de igreja. Quase uma versão de seu Lunga, com cores alagoanas. Tolerância zero, à semelhança do personagem do saudoso Milani. As sextas, sábado e domingos, ligava os artefatos e fazia o fim de semana de lazer, também nas cidades circunvizinhas.
Festas de padroeiras, fazia quase todas do entorno. Por convite, ou por insistência.
Aniversário de cidade, batizado de filho de fazendeiro, gincana de escola, visita de político. Onde pagassem, ele jogava a tralha em ferro no “fenemê” 1951 e ia ganhar seu pão.
Católico fervoroso, montava os brinquedos quase que por obrigação xiita e fundamentalista na festa de São Lázaro, padroeiro local. Neste dia, a montagem era especial, rebuscada, porque santo não merecia desonra.
Cobria o “fenemê” de bicos de luz, colocava música sacra na vitrola, lustrava cada cavalo sem dente do carrossel. A roda gigante, enfeitava com coroa de plástico em forma de flor, guirlanda já desbotada que seu Libório trouxe do Rio de Janeiro em 1973 e que era guardada com zelo para o grande dia. Além disso, participava da procissão, segurava andor, ia trecho de joelho, mandava rezar missa.
E coitado de quem falasse mal do santo, da liturgia ou do Padre Menezes. Era tapa e alteração na certa. Esquecia o lema de fraternidade Cristã e saia no sopapo.
Mas havia uma lei fundamental em seu centro de diversões: nos seus brinquedos, era conivente com sem vergonhice alheia o ano todo. Na roda gigante, namorado podia apalpar coxa de namorada 364 dias. Mas se a pegação fosse no 17 de dezembro, dia de São Lázaro, parava na hora de rodar o bicho.
A moça levava esculhambação e o rapaz uma tapona certeira no toutiço para aprender a respeitar Deus, a santidade e o recato.
Dizia em alto em bom som: “ – Safadeza hoje, nem Belzebu!
No 17 de dezembro, segurar menina em cima do cavalo, só mãe, tia, avó ou irmã. Se falasse que era prima, já olhava preconceituoso. E se fosse mulher que fornica com mulher? Não dava certo.
Sem contar que na jogatina, número libidinoso era excluído, azar de quem apostasse. Veado 24 sumia do tabuleiro. Por tabela, também desapareciam o 93, 94, 95 e o 96. Número 69, nem pensar, jamais, nunca, presepada da gota, um por cima do outro, porco tinha que dar com 70, 71 ou 72. Por precaução, retirava também o 17, e o 65, 66, 67 e o 68, porque macaco era bicho gaiato demais, vive a mostrar pinta e rabo para todo mundo! Não merecia participar da sagração.
Faz um ano que tudo aconteceu. Chegara o grande dia. Zeca Mafuá arrumou tudo. Passou óleo cavalo por cavalo, comprou até tinta branca para preencher dente faltoso. Montou roleta com jogatina de bicharada, mas no cantinho da praça, quase escondido, para não ofender papa hóstia com o pecado da luxúria, tentação de Asmodeus. Botou a guirlanda na roda gigante, banquinho por banquinho, com zelo e compaixão. Tudo iluminado, reluzindo, girando.
Passou imagem de santo, mulheres de véu, velas em punho. Festa linda, sagrada. Zeca Mafuá se benzia, terço na mão, e olho nos usuários de seu parque de diversões.
Se cortou errado, cheirou devassidão, faltou com respeito, ou se excitou um milímetro em ereção sequer, descia achincalhe. E mais, moça que blindasse a saia e lacrasse o decote no pescoço, bem debaixo do queixo.
Tudo ia bem, muito bem. Até que Zeca alegou mal estar e mandou Deolinda e as meninas tomarem de conta dos brinquedos e coibirem, veementemente, qualquer pecado da carne. Ia tomar ar! Emocionado estava de ver procissão tão linda atrás do santo, devoto que era.
E sumiu Zeca Mafuá, no meio da multidão. Praça cheia, igreja um deslumbre, montanha de rojão no alto, só esperando a chegada da imagem para liberar o fogatório, presente de deputado em primeiro mandato. Aquele ano o show pirotécnico era especial, inigualável, só similar ao da orla de Maceió na passagem de ano. Padre Menezes emocionadíssimo. A santa chegaria já!
Coroinha escalado especialmente para acender o pavio e detonar tudo, na hora certa, quando o padre assim ordenasse. Microfone ligado, santa ainda no bairro Operário e muito longe da matriz, o padre faz o anúncio aos fiéis. “ – Vamos acender a chama da fé em Crrrrrristo neste momento, irmãos de Deus”.
Era a senha que o coroinha tanto esperava. Foi fogo no pavio e a cidade, quase uma hora antes do previsto, quase se acabou. Foi belo e barulhento. Cada pipoco que pensaram ser o fim do mundo. Um desespero. Em uníssono o coro era só “- Valei-me!”. Correria geral.
Mas no meio da confusão, todo mundo parou quando viu a cena jamais imaginada. Zeca nu, correndo para a praça, saindo da igreja, com Estelita beata atrás, mão nos peitos e a outra mão nas coisas desejáveis. Ambos gritavam e corriam.
O que faziam no confessionário? Comungando é que não estavam. Ambos se ajoelharam nus centro da praça. O foguetório já ia acabando. Deolinda desmaiou e as meninas se danaram a chorar. Padre Menezes fez o sinal da cruz.
E o som dos fogos, ao passo que diminuía, era soterrado pelos gritos da multidão. Quando os traques findaram, Zeca Mafuá caiu em si. Fora desmacarado! A platéia, incrédula, delirou!
Falta pouco menos de um mês para a festa de São Lázaro. E neste ano, todos aguardam.
Haverá de ter muita safadice no parquinho do filho do Libório.