Nem Nelson Rodrigues, em sua literatura maliciosa mais aguçada, poderia prever este dia. Nelzinha, a mulher mais vistosa do bairro, naquela madrugada resolveu ir à feira do mesmo jeito que dormia. Completamente nua.

Estava decidida a mulher! Sua nudez só não seria total porque, segundo ela mesma, colocaria duas gotas de Aquavelva, perfume comprado ao prestamista e a ser pago em leves parcelas, anotadas na caderneta surrada do caixeiro.

A revolução estava prestes a começar. Estava fechado. Iria à feira nua, logo cedo, pela manhã. E aquela era só a primeira parte do plano.

Mas qual o porquê de tamanha ousadia? Na noite anterior residia a explicação. Nelzinha encontrara Gonçalo nu, junto com Betina, do mesmo modo como aquela galega viera ao mundo. Sem nenhum trapo no corpo.

Há tempos Nelzinha desconfiava do chamego da comadre. Betina, loura mignon, farta e quartuda, era “Gonça” pra lá, “Çalinho” acolá. Gonçalo, homem de grossos bigodes e farto peitoral, devolvia. Era “Betinha” aqui, “Tinhazinha” ali. E eram uns abraços e cochichos sem fim. Dali para a cama, um caminho sem volta.

Antes de se decidir pela nudez completa dali a poucas horas, na noite anterior, o esperado flagrante do adultério. Coitado do compadre Anselmo, feirante pacato, trabalhador, franzino e gente boa, da barraca de alface e couve-flor. Solícito, marido exemplar, e corno, Anselmo da Couve não merecia tamanha desfaçatez. Muito menos Nelzinha, mulher do lar, do marido dos filhos.

Mas a traição se consumara e a evidência era, pleonasticamente, evidente. Pego por Nelzinha com a mão e outros membros nas sem vergonhices de Betina, Gonçalo só esboçou um “valei-me!” de terror e desconcerto. Agora era tentar negar o inegável. Ou ir pra casa da mãe, amargar a tromba na cachaça, e esperar o sol raiar para dizer à mulher que a cena vista não era nada daquilo que ela estava pensando. Ah injusta.

Mas Nelzinha queria vingança! E a vingança se daria daqui a poucas horas. Acordou às quatro da manhã e começou a dar cabo a seu plano. Um banho completo e revigorante para disfarçar a cara de choro, corpo secado pela melhor e mais felpuda toalha comprada na Zé Araujo da capital, Aquavelva aos cântaros! Penhoar branco de tecido fino e transparente, salto alto de casamento. Era o sol saindo no céu e Nelzinha saindo de casa.

No caminho, espanto e regozijo de quem via. Homens, todos estupefatos. Nelzinha era a mulher mais bonita e mais cobiçada da vila Itangá, não merecia chifre, ou ao menos Gonçalo não os tinha precisão de botar, todos sabiam. A cada passo, um cortejo silencioso se formava. Carregadores, comerciantes, pais de família, meninos. E também algumas mulheres, o padre, o dono do cartório, o escriturário do banco. Todos acompanhavam, calados, a mulher já quase totalmente nua em direção à feira.

Até Gonçalo, avisado, foi ver o que acontecia e não acreditou. Tentou se aproximar de Nelzinha, pegá-la pelo braço, mas com um único olhar ela o repeliu. A esposa estava perdida! Lato sensu e e em duplo sentido.

No começo da feira, ao despontar a primeira barraca de trecos e borrachas para panela, o penhoar foi ao chão como programado. Agora sim, o plano começara a se concretizar. Nelzinha denunciava a sua repulsa ao adultério por meio da exposição de sua desejada nudez. Mas ainda faltava o troco à altura, estridente, animal.

Anselmo da Couve parava a Kombi na outra extremidade de barracas. Para Nelzinha, então, foi uma passarela a percorrer. Todos os seguidores, atônitos, olhavam aquele belo corpo nu desfilar, rebolar, provocar. Capcioso, solene e libidinoso. Mas todos em um silêncio respeitoso diante da moral e do recato de Nelzinha, por mais que muito gostosa ela fosse!

Um silêncio de sepulcro. E uma multidão já acompanhava a traída. Final do trajeto, lona verde de Anselmo à mostra. Nelzinha caminhou até a frente da barraca. Anselmo enrolava um molho de alface no jornal, quando teve a visão. Meu Deus! Meu Pai! Parou o embrulho na hora. Olhos esbugalhados. De início mais de espanto que de desejo.

Nelzinha, nua em sua frente. A ausência de som em tom menor só se quebrou por três expressões. A primeira: - Mas comadre?! ?! Sussurrada por Anselmo. A segunda: - És um corno!!! Proferida por Nelzinha. A terceira, pelo Nego Zuza, ajudante da feira, sábio matreiro sacana: aqui na Kombi dois “gaiúdo”!

Então o compadre, num até então raro arroubo de determinação, agarrou a comadre após a bela morena confirmar para todos a sua já sabida e suspeitada, embora nunca assumida, cornice descomunal. A partir de então, em tom maior, o silêncio foi quebrado após ambos entraram no veículo de transporte de cargas e fecharem com brutalidade a porta do carro. O plano iria para sua parte final.

Em meio às folhas de hortaliça e aos caixotes mal arrumados no interior diminuto do carro, Nelzinha fez o sereno Alsemo amá-la com força e furor.

Então Itangá inteira ouviu gritos e gemidos de prazer ecoarem aos montes do carro parado, com lona em cima, dentro verde de verdura, diante da multidão. Uma explosão de desejo, de lascívia e de devassidão emanava de dentro para fora por entre a chapa metálica da porta de escorrer. Toda a vila, ainda em silêncio, era só surpresa. Os dois, antes passados para trás, descontavam suas iras com o mais fogoso e quente namorar. Para todo mundo quase ver, e para todo mundo bem ouvir.

Anselmo se libertava assim da fama de manso e Nelzinha da reputação de besta! A partir daquele dia, amigaram-se e se amaram profundamente, sem temer repreensão! E ganharam o respeito de toda a vila, que fez questão de esquecer em público aquele dia de desforra, mas até hoje relembra, à boca miúda, a revanche dos dóceis.