- Professor, antes de te conhecer, te odiava!
Aquela frase sussurrada ao final da última aula de meu primeiro semestre como professor me deixou inquieto. Mas desconcertado mesmo fiquei foi ao ouvir a segunda sentença daquela aluna:
- Agora, sei o que quero ser: advogada criminalista!
Marina, assim a chamarei, foi uma aluna aplicada durante meu primeiro semestre como docente de direito criminal.
Porém em todas as aulas, por mais que eu me esforçasse em simpatia, Marina me olhava com um olhar incomum. Tinha eu medo daqueles olhos! Olhos por vezes de repulsa, reprovação!
Após as duas frases, Marina pegou seus livros e saiu, sem ao menos me dar a chance da réplica. Para mim, aquelas primeiras férias tiveram lances de angústia quando refletia sobre a atividade docente que recém iniciara. Os olhos de Marina não saiam de minha mente!
O que guardava aquela declaração contraditória? Qual o porquê da inicial repulsa e da posterior admiração, a ponto de minhas aulas tê-la inspirado a seguir carreira na seara do direito criminal?
Os anos se passaram, Marina se graduou. Na universidade, nenhuma palavra dela, nem minha, sobre os sussurros da última aula que vivenciamos.
Recentemente a encontrei, de súbito, no Fórum. Trocamos cumprimentos cordiais no corredor. E após um silêncio de segundos, daqueles que parecem durar séculos, ela desabafou:
- Professor, suas aulas me ajudaram a refletir sobre a complexidade da vida. E sobre o que de bom e de ruim podemos fazer enquanto seres humanos. E o quanto, mesmo sendo bons ou ruins, continuamos a ser, sempre, seres humanos. Cheios de falhas, de tormentos, de vícios e virtudes, mas sempre seres humanos! Naquelas aulas, compreendi o que é ser advogado. É preservar o direito, inclusive de sermos humanos, de sermos passíveis de erros! E de termos direito à defesa, indispensável à condição humana!
Finda a fala, sem explicação, levantou-se e me deixou sozinho entre a pequena multidão que se espremia naquele corredor. Deixou-me, mais uma vez, atônito.
Eu que me achava mestre, vi que em verdade tinha sido aluno daquela sábia professora.
O direito à defesa é essencial. E o advogado criminalista é seu operador na área jurídica. Do mais “ingênuo” ao mais torpe crime, seja com provas robustas contra o acusado, seja sem quaisquer indícios de autoria contra quem se acusa. Tanto diante da obviedade e contundência dos fatos, quanto da inconsistência dos elementos sobre o delito. O direito à defesa é inerente a todos nós, seres humanos que somos.
Naquelas que foram minhas primeiras aulas, apresentei questões mais filosóficas das ciências jurídicas e reforcei as demonstrações de leis, códigos e normas do direito criminal. Mas foi Marina quem desde aquele meu semestre inaugural como docente e anos depois me deu aula maior, fazendo-me relembrar seu olhar provocativo, atualizado com suas palavras relâmpago.
Defender não é transformar demônios em anjos, ou mesmo negar o óbvio e o elementar. Muito menos é fazer peça teatral para o exibicionismo e o convencimento de algo que não existiu.
Defender vai além. Faz parte do direito primeiro depois do direito à Vida. Como humanos, temos direito à Vida. E como humanos temos direito à defesa!
O advogado criminalista não é um “defensor de bandido”. Ele é o guardião do direito à defesa, essencial à cidadania e imprescindível à Justiça. Porém, infelizmente, nem sempre este profissional é compreendido. Lamentavelmente, é mais comum ele ser satanizado.
Compreendi: eu, para Marina em sua juventude de universitária, era no começo do semestre o professor de "defesa de bandido".
Mas, ao final da disciplina, ela me via como professor de Direito em sentido amplo!
Que honra!
Obrigado Marina!