Um dos comentaristas assíduos uma vez me perguntou se nós, ocidentais, também não podemos ser intolerantes. Eu respondo: é evidente que sim. Somos intolerantes quando esquecemos nossos valores democráticos e mimetizamos as práticas intolerantes de outras culturas. Às vezes fazemos isso baseados em valores democráticos.
É o que está acontecendo na França com a proibição do uso da burca. A direita francesa acusa os muçulmanos de disseminar valores antidemocráticos obrigando as mulheres a usar a vestimenta. Proibiram o seu uso em ambientes públicos. "A questão da burca não é uma questão religiosa, é uma questão de liberdade e de dignidade das mulheres", afirmou Sarkozy sobre a questão.
A reação da direita na França nada mais é do que a resposta radical baseada no pensamento multicultural. Estão pensando seus valores de igualdade e esquecendo a idéia de tolerância. Trata-se de um pensamento intolerante e segregacionista que acredita na efetiva separação entre as culturas. A justificativa para esse absurdo é justamente a ênfase nos valores franceses. Não é contraditório?
Mas eu pergunto: se uma mulher quer usar a burca ou qualquer outra vestimenta considerada ultrajante, como deixar de respeitar sua liberdade? Seria diferente condenar o uso obrigatório, o que não é o caso. Assim, a despeito de proteger a igualdade entre mulheres e homens, viola-se justamente a liberdade das mulheres! É a resposta radical aos relativistas culturais. É como se os franceses dissessem: “Se lá na sua cultura as mulheres ocidentais são obrigadas a cobrir a cabeça, aqui, as mulheres muçulmanas são obrigadas a mostrar. É a nossa cultura!”. Entendem a essência autoritária da coisa? Repetem a atitude intolerante, negando assim seus valores democráticos! Uma pena.
Sabe o que é isso? A exacerbação do discurso multiculturalista e seus mais perniciosos efeitos. O multiculturalismo não gosta muito do termo “tolerância”, acha muito liberal e, portanto, prefere a ênfase nas diferenças entre grupos, raças, etnias e religiões. Sendo assim, a noção de tolerância não tem lugar porque seria uma idéia “eurocêntrica”. O certo não é “tolerar”, é “reconhecer” as diferenças.
Na Europa, esse discurso é particularmente complicado, pois leva à idéia de que a comunidades asiáticas ou muçulmanas que vivem nos países europeus não deveriam se submeter ao disciplinamento dos direitos humanos. Assim as mulheres poderiam ser subjugadas e submetidas a torturas sem que isso configure violação de direitos humanos. Sabe como é, a “cultura deles é assim mesmo”. E esses aspectos deveriam ser reconhecidos pelos franceses.
É contra isso que se volta o discurso de Sarkozy e seus companheiros. Mas a resposta não foi com a aplicação da noção de tolerância. O problema é que a tolerância é um valor. E como tal, é o que permite a convivência democrática das diferenças. Qual o limite para a tolerância? A democracia não pode aceitar práticas que violem suas próprias bases. Não se pode aceitar que, em nome de uma cultura, uma mulher seja subjugada. Mas também não se pode, em nome da democracia, impedir a liberdade de expressão.
O que seria o certo? Proibir que práticas antidemocráticas fossem praticadas em nome da cultura imigrante. Tudo o que for questão estética, artística ou religiosa, desde que não viole a liberdade, deveria ser tolerado. Isso é democracia.
Com a proibição da burca, todos os traços da cultura imigrante estão sendo apagados. Com essa resposta radical, os franceses se igualam aos relativistas, imaginando que sua cultura pode subjugar a outra, ultrapassando os limites da tolerância. Trata-se, portanto, de uma contradição com os valores democráticos. Isso não é liberal. Isso não é tolerância.
É nisso que dá enfatizar diferenças.