Você já experimentou a carne conservada na própria banha? No Brasil, ela é chamada de carne de lata e feita geralmente à base de porco. Mas na cozinha tradicional francesa esse método leva o nome de confit, sendo famoso o de pato. A receita francesa clássica, feita da coxa e sobre coxa do pato imersas em gordura, até hoje faz sucesso com os mais diversos acompanhamentos.
A palavra confit vem do verbo francês confire e quer dizer conservar. Desde tempos imemoriais, muito antes de essa preparação entrar para a alta cozinha, o método de confitar já era usado para a conservação de carnes na gordura ou de frutas no açúcar (confeitadas). Herdamos dos portugueses o hábito de fazer a carne de lata, principalmente com porco.
Nesse último final de semana fui até Gonçalves, no sul de Minas Gerais, que fica a 200 quilômetros de São Paulo, e matei as saudades dessa carne de sabor tão concentrado e especial. Minha mãe fazia porco na lata quando morávamos numa fazenda, em Cambé, no Paraná. Meu pai matava o porco e, como não tinha geladeira, a carne ficava por meses na banha e não estragava de jeito nenhum. Dona Basília usava o mesmo método para conservar a carne de boi. Fazia com ela almôndegas e colocava-as na banha.
Voltando à minha passagem por Gonçalves: ali, um pouco afastado do centro, no bairro dos Venâncios, fica o sítio e restaurante da Dona Vilma. Ela faz uma cozinha caipira autêntica. Entre suas especialidades, está a carne de lata - seus clientes devoram 40 quilos de pernil de porco desossado por semana, totalizando 160 quilos por mês.
Lá a gente come na varanda, vendo as galinhas ciscarem no quintal. Chegamos um pouco antes do movimento do almoço e eu pude descobrir como ela preparava a carne. “Minha mãe aprendeu com a mãe dela e eu aprendi com a minha mãe”, diz Dona Vilma, gonçalvense de 63 anos, há dez anos com o restaurante.
O processo da carne de lata é demorado, leva mais de um dia. Primeiro, a banha de porco tem de ser frita em um tacho, reservando o torresmo. Depois, essa mesma banha vai para uma lata grande onde o pernil será cozido com ele mais um pouco de água. Tudo no fogão à lenha, por três horas em fogo baixo e até que a carne fique macia - a temperatura de cocção não pode ultrapassar os 90 graus, para que a carne não frite. Isso nada mais é do que um tipo de cozimento lento, à baixa temperatura, técnica tão usada hoje pela chamada vanguarda culinária.
Após essa etapa, o pernil é retirado da banha e dourado em alho e sal. A carne volta de novo para a lata e vai ao fogo brando para que a gordura penetre. Nesse momento, é importante que se cubra totalmente o pernil com a banha. “Se não fizer isso pode ficar um vão e aí a carne embolora”, diz Dona Vilma. Depois é deixar a carne esfriar, de um dia para o outro, cobrindo a lata com um pano. “Nesse momento não pode tampar, senão a tampa transpira e estraga a carne”, diz.
Ao esfriar, a banha talha e forma uma camada protetora, impedindo o contato com o ar. Assim, a carne pode ser guardada por meses sem precisar ir à geladeira. Depois, é só pegar os pedaços, esquentar e comer.
As facilidades da vida moderna tornaram rara a carne de lata, que virou iguaria. De um lado, o porco na lata na lata está no cardápio do restaurante Dalva e Dito, de Alex Atala, cuja proposta é reunir referências do Brasil colonial em releituras mais contemporâneas. De outro, está Dona Vilma, ativa da culinária tradicional brasileira, tão rica quanto saborosa.
Quem disse que só a cozinha francesa tem confit?