Cada vez que leio argumentos dos defensores de cotas raciais fico mais aperreado com o rumo que o debate está tomando. Parece mesmo que os que são contra as cotas são racistas. Na verdade, tecnicamente, é o inverso. Quem pretende utilizar critérios raciais é justamente quem defende as cotas. São eles que acreditam numa clivagem inexistente de fato, e infame do ponto de vista político e moral: a diferença de raça.

Tenho alguns argumentos claros e definitivos contra as cotas raciais que já expus em outros textos no blogue, mas um deles é particularmente relevante. Os mestiços estão sendo apagados da história e da identidade brasileira.

O argumento central contra as cotas baseadas em critérios raciais é o de que raças simplesmente não existem. Biologicamente, isso já é fato incontroverso. As diferenças fenotípicas não significam nada do ponto de vista biológico, sendo impossível ou mesmo inócuo classificar seres humanos por raça. Isso significa que raças são criações humanas.

Esse tipo de criação sempre serviu para segregar, nunca para unir. Ora, se a criação das raças sempre serviu para separar e sempre levou à violência e à opressão, como esperar que a retomada desse conceito nos leve a uma “reparação social”? É muita ingenuidade acreditar que faremos integração por meio de critérios que discriminam. E, pior, são critérios que, historicamente sempre serviram como argumento nefasto contra a igualdade.

O fato de raças não existirem do ponto de vista biológico também pode ser referendado pela amplitude da mestiçagem que vemos no Brasil. A desconstrução do mito da democracia racial não conseguirá apagar o obvio. Brasileiros, em geral, não se identificam com nenhuma raça. São morenos, escurinhos, marronzinhos, etc. Ao contrário do que dizem os críticos de Gilberto Freire, a construção da democracia racial não foi imposta intelectualmente, mas tem base nos fatos.

A mestiçagem também impõe um problema prático aos neo-racistas, e esse problema tem implicações morais profundas. Como identificar, na prática, quem é ou não “negro”? Não me venham com verborragia barata afirmar que “A polícia sabe quem é negro”. Eu quero que alguém aponte qualquer critério para que possamos decidir objetivamente quem é negro e quem não é.

Toda vez que se tentar apontar um critério, o defensor das cotas mostrará sua versão fascista. Ele terá que mencionar graus de tonalidade de pele. Ele poderá vincular a negritude à cultura. Então negro seria quem gosta de cultura africana? Jazz americano vale? A coisa beira o ridículo. Não. É ridículo.

E a auto-declaração? Seria o caminho menos infame, não fosse a tão falada possibilidade de “fraude racial”. Obviamente, todo mundo se declararia negro, pardo ou índio, tudo para obter seu lugar na sociedade. E não se pode culpar ninguém por isso! Se eu tenho uma mínima tonalidade de pele escura, alego que sou pardo. Se eu sou branco de olhos azuis, alego que tenho ancestrais negros. Quem tem autoridade moral para dizer que a alegação não é válida?

Isso mostra que o critério da auto-declaração é o menos infame. É que ele se anula como critério! Sendo assim, o tema perde a importância. Politicamente falando, se as cotas raciais vencerem, um bom acordo é que elas sejam baseadas na auto-declaração.

Na verdade, não existe critério. Se não existe critério, não existe separação! Isso me lembra William James. Para o pragmático, só existe diferença quando ela aparece na prática. Se, na prática, é impossível identificar um critério para diferençar brancos e negros, essa separação não existe, ou não faz sentido.

Retomando o argumento central. O aspecto mais triste nessa história de cotas raciais é que quem paga a conta não são somente os brancos pobres. No final, quem se lasca mesmo são os mestiços. Veja que na UnB, por exemplo, eles obrigam o candidato mestiço a se declarar negro:

“Para concorrer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato deverá ser de cor preta ou parda, declarar-se negro e optar pelo sistema de cotas”.(http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/index.php)

Se eu for de cor parda, não posso me declarar mestiço. Tenho que me declarar negro. Percebam que todas as vezes que se pleiteiam as tais cotas os mestiços entram na conta de negros. É a aplicação da regra da “gota de sangue”. Quem tiver uma gota de sangue negro, é também negro. Eu, por exemplo, sou negro para essas estatísticas fajutas.

Mas quando o mestiço vai pedir, no caso concreto, a vantagem das cotas, aí ele descobre que não é tão simples assim. Nas universidades que criaram tribunais raciais, vários são os requisitos para definir a negritude. Um mestiço nem sempre será considerado negro, ainda mais se ele tiver pele mais clara.

É aí que ele descobre que os mestiços estão sendo usados apenas para engordar estatísticas. Mas isso é óbvio! Dadas as tonalidades existentes no Brasil, grande parte da população poderia se dizer mestiça – e, portanto, negra! Isso inviabilizaria a política de ação afirmativa.

Não é à toa, meus amigos, que os tribunais raciais tomam decisões tortas e absurdas. Desde gêmeos univitelinos que foram considerados de raças diferentes até pardos que não obtiveram cotas por serem brancos demais. A verdade é que não existe critério justo para definir quem é ou não negro ou pardo. A invenção desse critério serve mesmo é para eliminar a mestiçagem da identidade brasileira.

Veja o que disse Sra. Helda de Sá, representando o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB) e a Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia (ACRA) na audiência pública ocorrida no STF sobre as cotas raciais:

“O Sistema de Cotas para Negros da Universidade de Brasília, inversamente do que defendia Darcy Ribeiro, o idealizador, fundador e primeiro reitor da UnB, tem por base uma elaborada ideologia de supremacismo racial que visa à eliminação política e ideológica da identidade mestiça brasileira e a absorção dos mulatos, dos caboclos, dos cafuzos e de outros pardos pela identidade negra, a fim de produzir uma população composta exclusivamente por negros, brancos e indígenas”. (http://nacaomestica.org/blog4/?p=620)

Na mosca. Para se sustentar, as cotas raciais devem ter fundamento na supremacia racial ou na regra da “gota de sangue”. Deve se basear em algo que simplesmente elimina a mestiçagem brasileira e, nesse sentido – vejam que absurdo – elimina a própria identidade brasileira.

É triste ver que, em pleno século XXI, temos que assistir à criação de tribunais burocráticos para definir quem é ou não negro. Pelo visto, a história se repete.