Osvaldo Moreira: “Um juiz me chamou de negro safado. Me marcou, mas tenho dó dele”

23/11/2015 07:00 - Geral
Por Davi Soares / CadaMinuto Press
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Após migrar da capital mais negra do Brasil, na Bahia, para a capital de Alagoas, no Estado onde nasceu e ruiu o maior levante libertário de negros escravizados de que se tomou conhecimento, o químico e administrador Osvaldo Moreira teve de resistir pacificamente à estupidez racista da elite da sociedade de Alagoas. Para estabelecer-se como um dos mais bem sucedidos empresários da área gastronômica de Maceió, sentiu literalmente na pele o que é ser negro na terra de Zumbi dos Palmares.

Nesta conversa com o CadaMinuto Press, Osvaldo Moreira revelou como usou do jogo de cintura e de uma postura incisivamente cidadã, para defender-se de sucessivos ataques de um coronel bem comum em Alagoas, que dirigiu uma artilharia de injúrias raciais e outros artifícios rasteiros para tentar afastar de sua vizinhança aquele empreendimento que iria muito além de um restaurante, mas se consolidou como um dos mais importantes redutos de afirmação da cultura afro-brasileira, o Akuaba.

Era um juiz de Direito, o algoz do homem que venceu a pobreza vendo os pais tirarem o sustento da venda de acarajé preparado pela mãe, na Cidade Baixa de Salvador. O representante da Justiça de Alagoas foi vencido pela perseverança do negro Osvaldo, que segue fomentando o fortalecimento da identidade negra no estado que o acolheu e hoje o respeita como cidadão igual, como realmente sempre foi.

Como se deu sua vinda para Alagoas?

Vim para Alagoas por intermédio da petroquímica. Sou químico e trabalhava na atual Braskem, que antigamente era a CPC. Fui designado para vir para Alagoas, quando criado o Polo Cloroquímico. Minha esposa é pedagoga. E nesse meio termo de Vera ficar em casa e exercer a função de pedagoga, tínhamos um menino pequeno, que estava com um ano, que é o Jonatas... Nessa brincadeirinha, ela não conseguiu se inserir no mercado de trabalho, porque o menino estava pequeno, não conhecia ninguém aqui e tinha que cuidar do bebê, né? Como sempre gostei de uma cervejinha, comidinha e de receber amigos em casa, Vera fazia aqueles banquetes, com caruru, vatapá, acarajé... O típico baiano. E as pessoas sempre elogiavam: ‘Vera, você cozinha muito bem. E Maceió não tem restaurante de comida típica baiana E por que não montar?’ E consultamos nossa arquiteta para montar um restaurante em casa, onde a gente mora até hoje. A arquiteta alertou para os problemas que poderiam ocorrer, pôs mil empecilhos. Mas montamos o restaurante para os finais de semana. Mas um amigo chamou outro e fez uma corrente grande, tanto que os condôminos começaram a se incomodar com o volume de pessoas. Depois de um ano e oito meses, lá, fomos obrigados a sair para um lugar mais profissionalizado. Viemos para cá, na Álvaro Calheiros, com funcionários e uma estrutura legalizada. E fomos evoluindo, buscando sempre como pano de fundo essa temática afro-brasileira, que é nosso diferencial competitivo. E o Akuaba hoje vai para 21 anos.

Como o crescimento do negócio não apagou a militância afro?

A gente também foi mudando, com a evolução do mercado. Hoje a tendência é uma comida mais saudável, então, a gente foi inserindo dentro do cardápio o filé de peixe, o filé mignon, coisas que a gente só trabalhava com o típico mesmo, à base do dendê. Mas sempre colocando pitadas desse tema africano, mesmo no filé de peixe. Por exemplo, tenho um peixe que não leva... É ebubu fulô, que é um peixe a Castro Alves. É um peixe que não tem tanta relação com a Bahia, com Salvador, mas tem relação direta com a África. E é um peixe saudável. Então, a gente tenta sempre fazer esse link com essa pegada afro-brasileira, entendeu?

Essa trajetória empresarial de sucesso de um negro em Alagoas chegou a ter algum tipo de reação? Ou senhor sempre é tratado com naturalidade?

Olha, evidentemente que sempre existe [reação]. Isso a gente não vai poder negar. Mas eu sou um cara que combato muito essa intolerância. Eu, de qualquer forma, me imponho bastante. Acho que sou respeitado porque procuro fazer com que me respeitem. Essa questão do conhecimento, por exemplo, é uma questão que eu bato com muita força. Essa coisa da academia. Sou uma pessoa que estudei no ensino público, fiz um curso de química na universidade, quando comecei a ter um negócio, já caí para uma faculdade para fazer administração, e não parei. Fiz uma pós-graduação, fiz MBA. Ou seja, estou sempre reciclando, porque acho que o conhecimento liberta o homem. Independentemente de qualquer coisa, a gente procura buscar conhecimento para poder estar a altura, entendeu? E para saber interpretar determinadas intolerâncias. A gente vê com pesar determinadas intolerâncias, mas acho que é uma questão de a gente se impor.

Qual a lembrança que o senhor tem de algum tipo de discriminação já vivida?

Eu tive uma discriminação que isso, realmente... Eu não tive nenhum ressentimento e isso não me deformou. Quando comecei, essa casa era a metade. Mas, o dono dessa casa aqui, esta outra metade do restaurante, que comprei depois... O cara que morava aqui era um juiz. E esse juiz, cara, fez de tudo para me tirar daqui. E nós tivemos algumas discussões e teve uma vez que ele me chamou de negro safado. Sabe? Um cara com uma formação de juiz, que tem que incentivar o bem, a igualdade, me tratou dessa forma. Então, essa foi uma coisa que marcou. Mas, hoje, eu tenho até dó dele, sabe? O cara tem só o título de juiz, mas ele não sabe a importância que ele tem dentro do contexto social para fazer a mudança de que o nosso País tanto precisa.

A consciência negra de que o negro precisa é a mesma de que a sociedade precisa?

Veja bem, existe um contrassenso. O negro, hoje, realmente, se você for pegar as estatísticas, os dados dizem que houve mesmo um massacre, um impedimento da igualdade. Se você for para as universidades, vai ver que a grande minoria são negros. Se você vai para os presídios, você vê que a grande maioria são negros e pobres. Então, existe alguma coisa errada nisso, entendeu? Então, essas necessidades são antagônicas. Não se completam.

Como lidar com esse tipo de situação? Ainda tem uma perspectiva de isso mudar para além das políticas afirmativas e de distribuição de renda. A sociedade brasileira faz alguma coisa para que isso mude?

Vem mudando, com certeza. Essa intolerância vem diminuindo. Porque, hoje, a gestão não é por qualidade nem é por serviço. A gestão que a gente vive hoje é de valores. Vivemos uma gestão de valores. E hoje você vê que mão de obra escrava não é conveniente. Não é bacana, não é legal. Então, essa questão racial, também, as pessoas estão se conscientizando de que não é por aí. Tem que haver essa igualdade e esse respeito. E a gente já vem percebendo que é no mundo todo.  Antes, se alguém discriminava um negro, aparecia muita gente para ajudar e reforçar o racismo. Hoje, é diferente. Se alguém faz isso em público, as pessoas condenam e até massacram essa pessoa intolerante. Eu tenho fé e esperança de que, realmente, a coisa tenda a ficar melhor ainda, para minimizar ainda mais esses efeitos nocivos desta questão racial.

 

O senhor vem de um estado em que mais de 80% da população se declara negra. Salvador é a cidade mais negra fora da África. E isso talvez repercuta em um maior orgulho, em uma maior disposição de se aceitar enquanto negro. Mesmo tendo nascido no estado que foi palco do Quilombo dos Palmares, o alagoano precisa ter mais essa postura de autoafirmação?

Com certeza. Evidentemente que existem muitos movimentos aqui. E tem negros assumidos e que lutam e buscam. Mas a questão de se aceitar, na realidade, é cultural. Aqui, a grande elite não deu essa oportunidade de o negro se colocar, de se mostrar. Tanto é que teve aquele lance Dia do Quebra (em 1912), que foi aquela coisa de dizimar os terreiros e as casas de santo. E isso reflete em um certo acanhamento do próprio negro, dentro dessa conjuntura alagoana. Existe o preconceito e o negro que não se assume também na Bahia. Mas, a identificação negra foi uma coisa que foi difundida na Bahia como uma coisa bacana, cultural. Tanto é que hoje Salvador trabalha bastante esta questão dessa cultura negra e a utiliza como ferramenta de atração de turistas. Aqui existe essa postura por conta da repressão e da formação, também. Porque, queira ou não, a gente vê que as pessoas, em termos de escolaridade e de conhecimento, ocupam os piores espaços nas estatísticas. Comparando-se com o restante do Brasil, Alagoas tem ficado sempre para trás nessa questão educacional. Porém, tem muita gente bacana trabalhando nesse movimento, como o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Eles trabalham bastante essa questão e têm feito um trabalho bem legal. E creio que a coisa tenda a melhorar, também.

Por falar no Quebra, o senhor avalia que hoje há alguma liberdade e espaço para o culto de religiões de origem africana, em Alagoas?

Existe. Hoje tem vários terreiros de candomblé aqui no estado de Alagoas. E são pessoas extremamente muito bem respeitadas. Tem o Pai Célio, a Mãe Neide, que são expressões mais altas dentro dessa religião e não têm tido maiores problemas. O problema maior é quando a manifestação é grande. Por exemplo, no dia 8 de dezembro, quando descem aqueles terreiros todos do interior, para a Praia. Aí a galera já começa a olhar de meio pau, e tal. Aquela coisa da distância, sabe?

Lembro que já há eventos programados para logo em seguida, no mesmo espaço, por igrejas. O que parece um pouco de provocação, de afronta...

Pois é. Ainda tem essa coisa. Mas, de certa forma, existe um espaço. A Prefeitura de Maceió, antes, pegava no pé. Mas hoje tem mais liberdade, porque o pessoal correu para cima das autoridades e isso tem garantido que façam a celebração desses cultos com mais liberdade.

O senhor professa alguma religião afro, é adepto do sincretismo?

Na realidade, eu cultuo os orixás. Tenho muita fé neles. E aprecio sim a Igreja Católica. Vou às missas. Tenho o hábito de ir às missas. Isso não impede, não.

Temos na Serra da Barriga, em União dos Palmares, um local que abrigou o que já foi chamado de a primeira democracia racial, a República dos Palmares. Aquele espaço histórico e sagrado é subutilizado turisticamente ou culturalmente?

É sim. Já visitei a Serra da Barriga e ela precisa de mais atenção. Com certeza. Não deixa de ser um atrativo turístico. Porque, hoje, o turismo cultural, que busca o conhecimento da nossa história, está crescente. As pessoas não vêm só em busca de praias, lagoas, restaurantes e bares. Acho que é uma pedida maravilhosa, sim. A Serra da Barriga é muito subutilizada. Precisa-se trabalhar muito mais neste aspecto.

A política de segurança pública, nos últimos meses, fez reduzir a violência, principalmente com relação às mortes. Mesmo assim, esta política segue colocando o negro como cidadão em constante ‘atitude suspeita’?

Sim. Evidentemente que sim. Porque, quer queira ou não, vai muito pela aparência, né? Às vezes o cara está de sandália, de bermuda ou sem camisa... A gente vê frequentemente que quem está sendo abordado é exatamente algum grupo de negros. Você nunca vê uma galera bacana, loiros e tal sendo abordada. Isso é uma realidade. Mas, de um modo geral, essa questão da segurança é uma coisa que assola o nosso país de um modo geral. As drogas têm invadido os lares e os guetos. Hoje, meninos de 10 ou 15 anos já estão sob o comando dos traficantes. E quem mora nas favelas, na periferia, são os negros. E precisa ser feito alguma coisa nesse sentido. Porque os presídios são um reflexo de um problema com relação direta com a educação. A sociedade mais educada pensa melhor, age melhor, reflete melhor. E não apenas no ponto de vista do indivíduo, mas também de quem faz a segurança pública e a de quem toca a educação. A pegada é essa. Mas o negro vem sendo bombardeado e a atitude suspeita sempre recai sobre o negro. Porque o maior índice de criminalidade está nos guetos. É lá que o bicho pega. Aqui, na orla, é só paz e amor.

O seu estabelecimento, mesmo sendo comercial, cumpre um papel social nessa militância?

Sem dúvida alguma. A gente tem algumas parcerias, com o próprio NEAB. Agora mesmo teve a Marcha das Mulheres Negras em Brasília, e apoiamos o evento. Fizemos uma festa para arrecadar fundos, para poder possibilitar o transporte dessas mulheres, não apenas negras, mas as catadoras, indígenas, e tal. Mandamos um ônibus com 45 mulheres, para essa marcha em Brasília. Há o Núcleo Temático de Identidade Negra também, que, nas escolas, no ensino fundamental, começa a dar essa questão da cidadania, do respeito, a gestão dos valores, a postura de se autoafirmar e de se identificar, para poder ter uma postura melhor dentro da sociedade, mesmo que esta sociedade tenha preconceito. Também trabalhamos essa questão da autoestima, de buscar o conhecimento, em vez de estar se envolvendo com outras coisas. Muitos são excluídos, por serem de famílias pobres, mas é importante passar esse legado, para que eles busquem conhecimento. Porque a saída é a educação, não tem outra saída. O negro não vai herdar fortuna, então a busca tem que ser pela educação. Não tem outra. Por isso esse núcleo é tão importante e mantemos relação direta com ele. E, de um modo geral, sou um negro que não me eximo de estar colocando o meu posicionamento para os meus clientes, cuja maioria da classe B e AB, gente que forma opinião e podem modificar o pensamento.

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