Vida de repórter; invertendo a pauta, enfrentando ACM

24/05/2015 09:05 - Geral
Por Eliane Aquino
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Ser repórter de política do jornal Correio da Bahia, em Salvador.

 Convite feito, convite aceito. Lá vou eu, em 1986, para mais um desafio profissional.

Havia apenas um ‘porém’, advertiram-me. O dono do jornal era nada mais, nada menos, do que Antônio Carlos Magalhães, o coronel político ACM, então ministro das Comunicações do governo Sarney.

“Normal”, pensei. Eu já tinha então passado por outros veículos de propriedade de políticos, não haveria de estranhar, mais um.

Malas arrumadas, filho a tiracolo, cheguei a Salvador em maio, ano eleitoral. Ainda no aeroporto, comprei jornais locais e me deparei com a força da disputa eleitoral no estado. Nem tinha havido as convenções e os pré-candidatos já duelavam por meio da imprensa. Instalada em casa, no Farol da Barra, pude estender mais minha ‘pesquisa’ pelas pendengas políticas na Bahia.

Percebi, de imediato, que não seria fácil trabalhar ali, muito menos no jornal de ACM.

Final de semana foi para me inteirar da situação; na segunda-feira já cheguei à redação sabedora de quem é quem nos partidos e nas ‘chefias’ políticas do estado. ACM dominava praticamente todas as casas de poder; câmaras municipais, Assembleia Legislativa, Tribunal de Contas, e mantinha uma relação quase de mando no judiciário.

Também sob seu comando político, a maioria do poder econômico da Bahia.

Na adversidade a ACM, havia os partidos de esquerda, o prefeito de Salvador, Mário Kertész, e o grupo político de Waldir Pires.

A propósito, Waldir Pires se candidatou e se elegeu governador da Bahia, pelo PMDB, naquele ano, contra o candidato de ACM, o jurista Josaphat Marinho, do PFL. 

Na redação, recebi a primeira lição: oposição não entra nas páginas do jornal. Absolutamente em nenhuma situação, salvo denúncias, críticas ou coisas desse tipo, contra a própria oposição. Danou-se. E mostrar possíveis erros, provocar polêmica com os políticos ligados a ACM, pode? Nada, fora de cogitação. Ok. E do que eu vou falar? Da agenda positiva do PFL, dos projetos ‘bem elaborados’ dos partidários de ACM, de tudo o que for contra Mário Kertész e Valdir Pires. Posso argumentar? Não, não podia.

Havia uma estrutura maravilhosa de trabalho. Salários mais altos do mercado local. Tínhamos plano de saúde e outros benefícios. Éramos três jornalistas, além do editor, apenas na cobertura política.

Mas cadê a liberdade pelo menos para discutir a liberdade?

Deixei-me à primeira semana para conhecer de perto as duas Casas legislativas, os políticos, os presidentes de partidos. Tentei ganhar tempo na avaliação da relação interna, entre editor de página, editor geral e direção da empresa. Descobri, para meu desespero, que nada passava sem o olho de ACM em Brasília.

Teimosa, botei na cabeça que eu mudaria aquela situação.

Primeiro, procurei quem, da Oposição, era menos duro com ACM, embora não menos firme na ideologia. Encontrei o deputado estadual Luiz Nova, do PCdoB. Jovem, professor de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Era bom de avaliação, flexível na fala, duro nas posições.

Segundo, criei a pauta. Se era para ganhar, eu não podia errar de mira. Foquei no prefeito Mário Kertész, havia insatisfação de todo lado contra a gestão dele.  Puxei a crítica a Kertész para a cabeça da pauta e o restante foi deslizar fácil sobre as diretas já para presidente da República, movimentos grevistas, esquerda, direita, políticas públicas, papel de estado, Constituinte, propostas para a nova Constituição brasileira.

Entrevista feita, redigida, faltava o mais difícil: publicar.

Ligar para ACM, de pouco iria adiantar. Ele não me atenderia. Falar com os editores ou com a direção, eu estava certa de que nada conseguiria. Matutei uma madrugada inteira. E resolvi escrever ao ministro. Ele gostava de ler, era um bom leitor e admirador das palavras no lugar certo, segundo me informaram.

“Invertendo a pauta”, foi o título do meu texto ao ministro.

Defendi que a crítica do deputado Luiz Nova ao prefeito, por ser do mesmo grupo político de Kertész, teria maior repercussão política; defendi a necessidade do Correio da Bahia se impor junto ao leitor falando sobre o Brasil a partir de 1987 com a Constituinte, com outros atores, e, por fim, disse que essa nova postura dele com o jornal deixaria os “adversários”, no mínimo, atordoados por alguns dias, na tentativa de descobrirem que danado estava se passando na cabeça dele.

Anexei cópia da matéria.

Enfiei tudo em um envelope e deixei na portaria do prédio dele, no bairro da Graça, onde morava, numa quinta-feira. O ministro chegaria à noite e eu já começava a achar que, pela manhã, estaria demitida.

Era sexta-feira à tarde quando cheguei para trabalhar no Correio da Bahia e o meu editor me avisou:

- A entrevista com o deputado Luiz Nova vai sair. Já mandei o fotógrafo fazer umas fotos dele.

Eu não conseguia dizer uma palavra.

- O ministro autorizou, mas eu nem tive coragem de perguntar como foi que ele soube que você tinha feito essa entrevista. Porque nem eu, sabia.

Sentei-me. As pernas não me aguentavam mais. Nem eu acreditava que tinha conseguido.

A entrevista com Luiz Nova saiu numa página inteira, com direito a foto e chamada de Capa.

Foi a única vez na vida que eu tive vontade de apertar a mão de ACM e sorrir para ele. Mas não o fiz. E foi também a única vez que a oposição a ACM, no período em que eu estive no Correio da Bahia, teve espaço no jornal dele, numa pauta de fato jornalística.

Durante toda a campanha, a linha editorial concentrou-se em bater pesado, de qualquer maneira, nos adversários de ACM.

Em tempo: eu fui para a Editoria de Cidades. Não tinha aptidão para aquele tipo de jornalismo.

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