A “revolta” contra a imprensa no Clima Bom e a autocrítica necessária

17/12/2014 08:46 - Geral
Por Davi Soares
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A tarde desta terça-feira (16) expôs um cenário de terror vivido nas periferias da capital do Estado mais violento do Brasil. Após uma ainda nebulosa ação policial que teria resultado na morte de um jovem de 16 anos, populares incitados por criminosos e pela ignorância política atacaram viatura policial, atearam fogo em um ônibus, destruíram um veículo de equipe de reportagem e ameaçaram jornalistas. Tudo aconteceu no Clima Bom, em área de domínio do tráfico de drogas, como muitas existentes em Maceió.

Ressalto que apresento total e intransigente solidariedade aos colegas jornalistas, vítimas da criminalidade em pleno exercício da profissão. Não houve, da parte dos repórteres envolvidos, qualquer atitude que motivasse a violência, seja por ação ou omissão.

A autocrítica de que trata este texto é conceitual e não generaliza a prática do Jornalismo como se esta fosse fator motivador de violência. Minha autocrítica, enquanto integrante de uma categoria profissional, é dirigida às empresas de comunicação e a alguns poucos profissionais – ainda bem que são muito poucos – que insistem em, diante da TV, tratar de dramas particulares da violência como espetáculos de humor, com uma teatral e unilateral "indignação", que imprime no imaginário popular uma falsa autoridade policial na instituição imprensa.

A imprudência e irresponsabilidade de alguns colegas são tão graves, que apresentadores e repórteres de programas que exaltam o chamado “mundo cão” agem como se fossem policiais, juízes e investigadores (bom seria se investigassem mesmo).

Porém, tal postura jamais deveria fazer parte do cotidiano de trabalho de comunicadores que dizem fazer Jornalismo. Estes deveriam se limitar aos fatos e bem informar a sociedade, com opinião também, claro. Mas sem uma defesa tão quadrada das ações de policiais, que assim como jornalistas, podem errar ou cometer ilegalidades no exercício da profissão.

A própria cobertura da morte de ontem, mostrou a dificuldade da imprensa em compreender as circunstâncias em que o jovem José Natanael Valério dos Santos morreu, devido à falta de qualidade das informações repassadas pela própria Polícia Militar. São versões que devem ser tratadas como meras versões.

Veja algumas desses dados conflitantes veiculados na cobertura do caso:

Capitão PM Levy, oficial  do Centro Integrado de Operações da Defesa Social (Ciods)

“Quando chegamos lá, a equipe logo constatou a morte do adolescente. E, em seguida, aconteceram essas situações. Mandamos várias equipes para o local e contornamos o confronto”

Tenente Vicente, da Radiopatrulha:

Os moradores se revoltaram após uma troca de tiros entre a polícia e traficantes. "Este adolescente que morreu era traficante e bem conhecido na região. Ele foi atingido e caiu dentro de um matagal. Mesmo sendo socorrido por outros traficantes ele não resistiu e morreu gerando tensão. Na confusão, o primeiro apedrejamento ocorreu no carro da polícia, que teve que se retirar logo após a chegada do carro do Instituto Médico Legal (IML)”

Militares do 4º Batalhão:

“Guarnições da Radiopatrulha estiveram no Conjunto Colibri realizando uma operação, ocasião em que houve troca de tiros. A guarnição responsável não sabe se o jovem foi vítima de bala perdida ou se foi executado por traficantes. A polícia tentou realizar o socorro do adolescente, mas a população não deixou. Inclusive, apedrejaram o carro da Radiopatrulha”

Por fim, a assessoria de Comunicação da PM, em nota:

No final da manhã, o Samu entrou em contato com o Ciods (Centro Integrado de Operações da Defesa Social), solicitando apoio para prestar socorro a um indivíduo vítima de disparo de arma de fogo na localidade.

Não existe a confirmação se partiu de um confronto com a PM, tampouco existe boletim de ocorrência relacionado ao fato.

De acordo com o comandante do Batalhão de Radiopatrulha, cerca de 1h30 antes da ligação originada pelo Samu, houve uma troca de tiros na região do Rosane Collor, onde esteve presente uma guarnição da Unidade, todavia sem qualquer confirmação sobre feridos.

Trabalho a ser feito

Defender que o lado certo sempre é a polícia, como fazem alguns dos colegas de imprensa, é ignorar os riscos de cometer injustiças e de se arriscar em expor para a população, e também para a bandidagem, a seguinte mensagem: “Somos uma extensão da força policial”.

A presença da imprensa no campo de batalha é comum nas principais guerras que explodem no planeta. Expor injustiças nas guerras tem um preço a ser pago. E temos assistido barbáries sendo cometidas contra jornalistas pelo grupo extremista Estado Islâmico, no Oriente Médio. Muitas das mortes sequer têm relação com o resultado do trabalho desses jornalistas. Mas são resultados da postura de seus países na guerra contra o terror.

Defender injustiças tem custo dobrado. E as empresas de comunicação sabem disso. Devem, portanto, evitar jogar suas equipes em áreas de conflito, sem proteção alguma, onde nem a polícia ousa permanecer.

Nossas equipes de imprensa ainda não usam coletes como as de jornalistas que atuam na periferia do Rio de Janeiro-RJ. Apesar de a selvageria do Clima Bom não ter sido a primeira forma de violência cometida contra jornalistas em áreas dominadas pelo crime em Maceió.

A espingarda 12 apontada ontem para o motorista da equipe de reportagem da Gazeta de Alagoas não foi fruto de revolta popular alguma. Ela estava, certamente, engatilhada nas mãos de um criminoso, que se aproveitou da submissão da população para direcionar agressões contra os que são vistos como inimigos.

O Jornalismo não deve se render, tampouco reagir. Mas precisa esclarecer à sociedade que a imprensa de Alagoas é uma força de paz, de justiça, cujas armas devem disparar informações de qualidade, para dar suporte à pacificação de um Estado destruído pela ausência do poder público.

Há um trabalho a ser feito pela polícia, pela imprensa e pela sociedade contra o crime. Mas cada um deve atuar em sua trincheira, de modo a não se tornar alvo fácil para quem escolheu o terror como opção de vida.

Para a população do Clima Bom e de outras áreas de conflito de Maceió compreender quem é quem nesta batalha não basta identificar as viaturas, as fardas e os coturnos de cada profissional. Os jornalistas precisam abandonar o discurso policialesco, que desinforma e gera riscos de embates desproporcionais, diante de situações como a de ontem.

Esta não é uma postura contra a polícia, mas contra a injustiça. É uma ação de prevenção de atitudes criminosas contra a imprensa, mal disfarçadas em forma de revolta popular.

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