Jovem negro alagoano é torturado por policiais por conta de tatuagem

17/04/2014 09:43 - Geral
Por Davi Soares
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(Atualizada às 19h03)

Não tem graça nenhuma na gargalhada que encerra o vídeo no qual pelo menos dois policiais militares alagoanos participam de uma sessão de tortura contra um jovem algemado e humilhado diante de uma câmera. O motivo da violência covarde era a tatuagem de um palhaço que o jovem franzino imprimiu em sua pele negra.

Na linguagem do crime a figura representa o ódio a policiais ou até mesmo a indicação de que o tatuado já matou algum policial. Não era um espetáculo circense, mas a pancadaria divertiu uma plateia sedenta pela morbidez de ver um “bandido” ser vingado por outros criminosos escondidos pela autoridade de seus cargos.

De boné amarelo, braços algemados para trás e olhar aterrorizado, o jovem chama de “doutor” cada um dos integrantes do suposto grupo de autoridades. E é obrigado a afirmar ser “cuzão, zé ruela e viado” [sic] para a câmera. Também é forçado a prometer que vai apagar a tatuagem de palhaço, “quando sair da prisão”. Tudo isso entre tapas, socos e risadas. A reação mais violenta acontece quando o jovem chama um dos torturadores pelo nome: “Ô, doutor! Eu não fui pego com nada, o senhor mesmo viu! Ô, seu Maninho, eu sou usuário de maconha...”, diz o torturado, antes de ser interrompido com um tapa e um alerta: “Oxe! Não diga o nome dele, não, no vídeo! Não fale o nome do cara, não!”. O jovem pede desculpa, antes de levar outro tapa e ser repreendido novamente: “Nem o meu [nome]!”.

"Oxe, doutor! O senhor vai mostrar isso para todo mundo, doutor? Por favor, doutor!". De nada adiantou o pedido da vítima da tortura. As imagens circulam nas redes sociais, inclusive em grupo restrito a jornalistas, desde a tarde de ontem. Nenhuma divulgação foi feita, além das redes sociais e de um perfil de humor (!!!) no Facebook. É justamente neste perfil denominado “Deboche de Alagoano”, onde representantes de uma sociedade doente aplaudem a ação ilegal e autoritária, 50 anos depois de instalada uma ditatura militar no Brasil agora “democrático”. Outros, reagem previsivelmente com apologia ao crime contra policiais.

Não se tratava de gladiadores lutando em uma arena pela aprovação da plateia e de um imperador sedentos por sangue. Mas o torturado demonstrou estar diante de quem detinha os direitos sobre sua vida ou sua morte. Na manhã de hoje, a Assessoria de Comunicação Social da Polícia Militar de Alagoas disse não saber informar o destino do jovem, nem o motivo de sua prisão. Mas repudiou a atuação do grupo de representantes da corporação.

“O Comando da Policia Militar de Alagoas não admite este tipo de procedimento. Orientamos que as pessoas prejudicadas, que estão denunciando isso, procurem a Corregedoria da Secretaria da Defesa Social. Supostamente o caso não envolve só um policial militar, mas deve ter outro policial, e deve ser civil, pois está a paisano, lá. E em todos os casos que envolvem as duas polícias, uma corregedoria isenta para esta apuração é a da Defesa Social, que fica no Centro. E a população também pode ligar para o Disque Denúncia do 181 se tiver informações sobre a ocorrência”, declarou o assessor de comunicação da PM, tenente-coronel Maxwell Santos.

A cor da pele do jovem torturado é simbólica, porque, em Alagoas, 17,4 negros são mortos para cada pessoa não negra assassinada, segundo pesquisa divulgada em 2013, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É o Estado mais violento do País, também contra a população negra e pobre.

As imagens que você verá a seguir não foram editadas, apenas efeitos visuais protegem a identidade da vítima. O vídeo original que circula nas redes sociais já foi encaminhado à assessoria de imprensa da PM.

Impunidade para torturadores

A maioria dos alagoanos que se manifestou sobre o que viu nas redes sociais não conhece nem sabe o que fez a pessoa que estava sendo espancada. Mas essas pessoas voltaram o polegar para baixo para o jovem que teve sua honra e dignidade assassinadas diante de uma câmera. E aprovaram a ação dos policiais.

O mais assustador não é nem a condenação preconceituosa contra quem estava sendo espancado. Mas a falta de iniciativa própria das forças policiais e do poder público de investigar e punir tais atitudes que somente alimenta a criminalidade no Estado mais violento do Brasil, onde morrem quase sete alagoanos por dia.

Sem denunciante, apesar de o fato ser de conhecimento público, dificilmente os órgãos de controle interno e social investem numa apuração rigorosa do caso. Poderiam procurar saber, por exemplo, se este jovem continua em alguma carceragem destinada a presos provisórios. Mas este primeiro passo pode não ser dado, se familiares da vítima ou o próprio torturado não resolverem se expor ao risco de sofrer mais uma vez ações covardemente violentas de policiais criminosos.

No início do vídeo, é facilmente identificado um policial fardado, do lado esquerdo do vídeo. E no final da gravação, quem faz as imagens abaixa o provável celular, com a câmera ainda ligada, e mostra que também está fardado, com calça e coturnos.

Um mártir para a criminalidade

“A qualquer um que te dá na face direita, volta-lhe também a outra”, disse Jesus Cristo, no Sermão da Montanha, segundo o livro de Mateus. Uma das interpretações desta fala indica que o trecho do Novo Testamento não significava a facilitação da agressão ou a humilhação perante o agressor. Mas era um pedido de resistência pacífica, um desafio. Na época de Jesus, as autoridades batiam com as costas da mão direita para demonstrar superioridade aos demais integrantes da sociedade. Diante da face esquerda exposta, teriam de socar ou bater com a palma da mão. Tal ato igualava o agressor ao agredido.

O jovem torturado ofereceu mais que a outra face, se humilhou diante da tortura. Se a PM não explica o que este jovem fez, além de uma tatuagem que representa o ódio a policiais, não podemos sequer igualar autoridades deste quilate ao jovem. A atitude covarde dos agentes públicos que participaram da sessão de tortura não deve ser aplaudida, como tem sido nas redes sociais. Pois este jovem já virou mártir de uma causa que prega a violência como instrumento de mudança na sociedade.

Seus irmãos, vizinhos, crianças e adolescentes da comunidade onde ele vive agora têm mais um motivo para tatuar palhaços muito além da pele. Eles serão impressos nas suas almas, que serão muito mais facilmente cooptadas pelo crime, após confundir a ação policial contra negros pobres, como eles, com a mais pura covardia.

E o que Alagoas menos precisa neste momento é de motivos para termos medo ou ódio de uma polícia que deveria agir com cidadania, equilíbrio psicológico e métodos científicos. Pois desde o tempo de Jesus, a Lei de Talião é explicitamente ineficaz contra a criminalidade e jamais atuou a favor da pacificação da humanidade.

Que a esta tragicomédia alagoana acabe por aqui.

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